La Isla Mínima:
Clichês e Singularidades no Cinema Contemporâneo
Uma discussão que
atravessa o cinema, e, obviamente, outros tipos de expressão artística,
centra-se no pastiche, quando algo ultrapassa a referência e se torna imitação
de um estilo, um impudente amontoado de clichês e reflexo de uma realidade já
criada, que, em vez de se alçar ao patamar de recriação, torna-se plágio, um
misto de colagem e desfaçatez que não acrescenta elementos de revitalização ao
gênero ao qual se vincula, tão somente fragmentos incapazes de construir um
liame entre o passado e o futuro, ou a organização de ambos, permanecendo preso
ao presente, creditando a este “título de soberano”, ou seja, como se existisse
só o agora. Nesse sentido, o pastiche
como condição pós-moderna é inferior à paródia (com o qual é frequentemente
confundido), pois falta-lhe uma visão satírica do mundo.
A partir disso, uma
obra como “La isla mínima”, vencedor do Goya 2015 de melhor filme e direção
para Alberto Rodríguez, convoca para a discussão a respeito de clichês e
referências no cinema contemporâneo. O filme é um noir que utiliza as paisagens
pantanosas e a face circunspecta das cidades fronteiriças para um estudo de
personalidades e métodos, em que dois policias de Madri chegam para investigar
a morte de duas irmãs na região dos pântanos do Guadalquivir, em Sevilla.
Para Fredric Jameson,
o pastiche é uma das principais configurações da cultura pós-moderna. E a
pós-modernidade é marcada pela falta de historicidade e pela presentificação da
arte. Segundo Jameson, “num mundo em que a inovação estilística já não é
possível, só resta imitar os estilos mortos, falar através de máscaras e com as
vozes e estilos do museu imaginário" (JAMESON, Frederic. O pós-modernismo
e a sociedade de consumo. In: KAPLAN, E. Ann (Org.). O mal-estar no pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 31).
Desse modo, a memória não se transforma em História, é mera nostalgia, uma
reprodução em que o sentido está ausente, pois é uma “releitura” acrítica, a
“adaptação” do passado sem vestígios de tentativas de discutir, redefinir ou
engendrar conceitos. Por isso, essa indiferenciação de colagens de estilos é
compreendida por Jameson como uma paródia vazia do passado, um tempo refém das
imagens, no qual o visual se torna superlativo.
Linda Hutcheon, em
“Uma teoria da paródia”, defende que na arte pós-moderna o pastiche, na
verdade, é uma retomada de estilos passados, sobre os quais é exercido a ironia
e não mais a negação, como o fez Mikhail Bakhtin.
Também contrário às
exegeses de Jameson, Mario Perniola, ao falar de simulacro, cita Pierre
Klossowski que “contra toda a filosofia e o histrionismo é preciso estender a
todos os aspectos da vida a boa consciência do falso implícito no simulacro;
este não pretende ser algo diferente daquilo que é, mas expõe e potencia o seu
próprio caráter de aparência” (PERNIOLA, Mário. Pensando o ritual: sexualidade, morte, mundo. São Paulo: Studio
Nobel, 2000, p. 161). Assim, o simulacro impõe um gesto transgressor, já que
elabora uma práxis, isto é, atenta-se à história questionando a separação entre
realidade e aparência na qual se erigiu a filosofia ocidental. Para Perniola, a
cópia ou o simulacro não é mera imitação, um logro que, ao reproduzir o
original, instaura a falsificação como elemento ludibriador da arte, tampouco,
o simulacro pode ser entendido como inovador ou original, como se conquistasse
autonomia em relação ao seu modelo, mas “uma repetição tão exata que anula o
protótipo ao mesmo tempo que o preserva” (2000, p. 222).
Repleto de alusões
ao cinema noir, principalmente o estadunidense, e a clássicos filmes policiais
espanhóis, “La isla mínima” recorre a grandes planos para captar a paisagem
erma e inóspita, que parece esconder algo para além da sensação de distância
geográfica e ruptura entre conservadorismo moral (aparência) e perversão sexual
(de uma realidade que pode ser considerada subterrânea). Essa estética
contrabalança iluminação solar, que faz brejos e lodaçais comporem a
ambientação como se refletissem o isolamento e a não possibilidade de fuga da
natureza, seja ela equivalente ao "mundo natural" ou a humana, e
cenas noturnas que acentuam o sentimento de dúvida e a falta de clareza moral,
criando um clima opressivo para a película. Nesse aspecto, lembra a elogiada
série da HBO “True detective”, estrelada por Matthew McConaughey e Woody Harrelson
(apesar da trama de “La isla mínima” ter sido concebida e sua pré-produção
iniciar-se muito antes do lançamento da série estadunidense). E essa referência
é apenas uma das que podem ser apontadas nesta composição de filme de gênero.
Hollywood é o corpo, mas há personalidade espanhola na alma da obra de
Rodríguez.
Os caracteres
psicológicos que distinguem e aproximam os policiais Juan (Javier Gutiérrez) e
Pedro (Raúl Arévalo) estão alinhados às diferenças clássicas das produções
policias. Antagonismo e posterior confusão entre os comportamentos, até o
reconhecimento, seja em direção à amizade ou ao respeito, ou ao confronto. A trama
passa-se no ano de 1980, alguns anos após a morte do General Franco. Nesta
recém-instaurada democracia, os crimes cometidos no período de domínio
franquista permaneciam impunes. E esse é um dos pontos principais na tensão que
se instala inicialmente entre Juan e Pedro. Juan era agente do regime
autoritário, seus métodos, nada ortodoxos – que incluem intimidação e violência
–, entram em choque com o estilo analítico do republicano Pedro. Juan,
aparentemente, tem uma doença grave, já que urina sangue. Desse modo, carrega
os sintomas de um sistema político convalescente, em processo de deterioração,
que tenta esconder suas violações; e Pedro está prestes a se tornar pai,
aparentemente com problemas no casamento, representando uma república nascente,
com seus conflitos e dúvidas. Esse
contexto, ainda que abrace o clichê das teorias e ações díspares, o que
estabelece a dualidade entre os parceiros, proporciona a “La isla mínima” seu
teor crítico, a singularidade de, nas discordâncias referentes aos estilos de
condução investigativa, reunir olhares sobre uma Espanha que tentava sair das
sombras – no idealismo de um jovem que, mesmo que seja elogiado (e
pressionado), precisa mostrar que os desmandos de um poder despótico
encontravam seu ocaso – e, concomitantemente, convivia com suas cicatrizes
ainda expostas nas artimanhas impositivas de seus antigos partidários.
Neste sentido, “La
isla mínima” é um filme político. E um filme sobre memória. Não tão somente a
memória de um passado político cujo traços nefastos perdurarão pela história,
também a de um acervo cinematográfico que contribui para cada fotograma da
película. De “Conspiração do silêncio”, de 1955, dirigido por John Sturges, a
“Memórias de um assassino” (2003), de Joon-ho Bong, passando pelo drama
policial espanhol “El crimen de Cuenca”, de Pilar Miró, lançado em 1980. Esse
ensaio de gênero, memorial aos códigos que o estruturam, caminha em uma linha
clássica, incorporando com destreza cada referência, seja de atuação ou
construção fílmica, em uma mise-en-scène que envolve ao espectador exigindo
cumplicidade, pelo ritmo cauteloso, no qual as pistas conduzem a equívocos e
lacunas. As citações e a composição estão a serviço da produção de um olhar
renovado, em associação com os tributos percebidos ao longo da exibição. Para Jameson,
a pós-modernidade é um momento em que as ausências de originalidade e oposição demonstram
a falência dos ideais modernos. Assim, o pastiche predominou, inserindo-se no meio
acadêmico e na crítica artística, tornando obras inofensivas – em seu teor de
contestação –, aliadas a um conservadorismo moral e a-histórico, produtos
desejados de/em uma sociedade de consumo.
No entanto, obras
referenciais trazem a possibilidade de leituras que, além de mobilizar a
relevância do contexto, em uma discussão entre obra-mestra e citação, aponta a hipertextualidade
– caracterizada por Gerárd Gennette, em “Palimpsestos: a literatura de segunda
mão”, como todo texto derivado de um texto anterior. Desse modo, a planificação
acurada e o domínio do tempo que Alberto Rodríguez exibe em “La isla mínima”
dialogam com o cinema de Don Siegel (diretor de clássicos como “Os impiedosos”,
de 1968, e “Perseguidor implacável”, de 1971) entre outros. Nesta atmosfera
evocativa, há grande contribuição da fotografia de Alex Catalán, que joga
constantemente com a efemeridade das certezas que são descartadas conforme os
becos sem saída apresentados. Então, o labirinto formado pelos pântanos
constitui o mapa de verdades insondáveis que precisam vir à tona. E nisso, a
fronteira se estabelece como limite moral, como nas séries estadunidenses “Twin
Peaks” (1990–1991) e “Breaking bad” (2008–2013) e no filme “A marca da maldade”
(1958), de Orson Wells.
A direção de
Rodríguez, se não procura a reinvenção, aposta em singularidades, trazendo à
luz as oposições que formam a película: referencialidade, diálogo hipertextual
e memória. Um duplo assassinato nos pântanos do Guadalquivir provoca clichês, estimula
um olhar para a história da Espanha e promove um raio X social a partir de uma
comunidade isolada. Um quebra-cabeça sobre o submundo das ações humanas:
psicopatia, misoginia e poder.
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