Reúno agora poemas sobre a garça que venho escrevendo desde o ano 2000, portanto, mais de 20 anos. Uma leitora me sugeriu trocar de bicho. Não sei como você aguenta, disse outra leitora. Já o professor de literatura brasileira Ronaldes de Melo e Souza dizia aos alunos, se eu fosse ele continuaria escrevendo sobre essas garças. E um jovem leitor, vendo-me contemplar as garças no rio Meriti-Pavuna, falou em tom oracular: você acha que a história das garcinhas acabou? Sim, eu já tinha escrito 200 páginas de poesias. E o jovem me disse, não acabou não! Elas ainda vão voar para bem lonnnnge... Disse isso e foi embora. Continuei a escrever sobre garças e de fato voaram para lonnnnge... Canadá, Espanha, Argentina, Angola, Portugal, México e com a impulsão da internet chegaram à Bolívia, Colômbia, Índia, Inglaterra, Alemanha, ao Texas, Uruguai.
Os meus primeiros versos sobre garça foram: branca, branca, branca/ a esperança muda de galho. Esperança que a filosofia nomeia de esperança ativa, entanto, como a garça numa perna só, vil é a esperança que se converte em realidade mutilada. Ao longos desses anos aprendi que a garça em combate no rio usa o bico, as asas, mas e no ar, em voo? Qual seria a sua defesa quando perseguida por predadores como gaviões, corujas, carcarás? Inusitadamente ela usa as fezes. Um jato de fezes nos olhos do predador que o queima e este vai ao chão. A garça é um urubu branco, tem a mesma acidez, daí eu dizer poeticamente: a garça é plágio do urubu. Observei que no mundo existe a mulher-garça, pois defende seu casamento, dando banho de fezes nas amantes do marido, algumas pagando até cem mil por danos morais e que me espantam essas histéricas sentenças, cheias de esquipações, não conseguem perceber que se trata de uma ave defendendo o ninho.
Neste livro o leitor verá que acrescentei novos poemas, perceberá que não sou contra a rima, que uso versos harmônicos com uma forte inclinação para a imagem na tentativa de traduzir as aves, as bicadas agressivas e amorosas. Por falar em sentimentos, dedico-lhe este livro, Jéssica Lancoski, que tantas vezes cambaleou, tropeçando no seu nome. Desde que a espia se partiu, fui entregue às tempestades, a esse mar que me pergunta e nunca sei responder.
UM POETA BATIZADO NOS MARES
Uma tarde minha mãe grávida, juntamente com meu pai, visitando meu tio, que cuidava do meu avô índio e cego, ao cruzar a soleira da porta, meu avô por três vezes bateu palmas e disse: Aluízio, prepara uma roupa branca e passa nela uma linha verde; o que está na barriga da sua mulher é um macho e a primeira roupa dele tem de ser branca passada em linha verde. Mais tarde e, já adulto, conversando com dona Maria Costureira, disse ela: fui eu que fiz sua primeira roupinha, por ordem do seu avô. Era branca e costurei com linha verde. Meu avô ficava um pouco com cada filho e estando lá em casa, chamou-me certa manhã de uma forma inusitada: vem cá menino da cabeça de repolho, cada fiapo tem um piolho. Foram os primeiros versos que ouvi com atenção pois se referiam a mim. Acheguei-me a ele que passou a mão na minha cabeça e disse, cabeça redonda, menino da cabeça de repolho e falou do meu cabelo fino. Meu avô era violeiro, gostava de música e dizia que Rita Pavone tinha voz de passarinho, datemi un martello.
Bem, meu pai cumpriu a ordem do meu avô e até exagerou porque, brincando com os meninos, eu trazia sempre no corpo uma camisa branca passada em linha verde. Meu avô era plantador de algodão e contava como era a colheita e fui tomando gosto pela agricultura a ponto de fazer uma horta no terreno que era tomado por capim-elefante. Eu tinha uma passagem secreta no capim. A horta nasceu de uma necessidade, madrasta, que se chamava Diamantina, um nome de pedra, não me dava comida, salvo na frente do meu pai e o meu destino foi demolir a pedra. Um dia meu pai, sem obras a fazer, tínhamos só feijão sobre a mesa, chorou. Chamei-o em particular e mostrei a passagem secreta e ele se espantou ao ver a minha horta. Alface, chicória, couve, coentro, cheiro verde, milho, tomate, bertalha e cesto com ovos de duas galinhas que foram pintinhos trocados por garrafa. Passava sempre o carro trocando pintinhos por garrafa. A bertalha subiu a cerca dos fundos, passou pela casa do vizinho, alcançou os fios e foi dar na casa de uma menina que ficava se olhando numa penteadeira e nos tornamos namorados por obra da bertalha. Meu pai me perguntou se eu era maluco. Não, pai, aprendi com vovô a gostar de agricultura. Colhemos as espigas, os tomates e almoçamos bem. Naquele dia aprendi com meu pai como a bertalha com ovo era gostosa. E meu pai voltou para admirar aquelas linhas verde no quintal. Por amor à agricultura me fiz jardineiro pelo SENAC, escrevi poesias sobre o repolho, girassol, a clúsia, que é muito perto da maciez da pele feminina. O sofrimento com o madrastio era suavizado pela água e o verde e a água foi se avolumando em minha vida porque eu frequentava a casa de um sargento da Marinha, que morreu oficial. Eu ficava batendo continência para o seu retrato, dizendo que um dia iria para o mar. Ingressei na Escola de Aprendizes Marinheiros e fiz-me ao mar e conheci a garça nos detalhes, vindo a ser a musa ornitomórfica. No meu primeiro dia de embarque, num contratorpedeiro que do jeito que estava já não podia ser contra nada, as ondas chicoteavam o navio; dormíamos e de repente uma onda rasgou o costado na direção do meu beliche, dando-me um banho de sal marinho. Quando meu avô faleceu, meu navio estava partindo, já tinha sido tocado o DEM (Detalhe Especial para o Mar), apresentei a certidão de óbito e obtive a licença nojo e saltei para o cais com a prancha sendo levantada pelo guindaste e olhei meu navio cinza, com tom de despedida, se fazendo ao mar... Corri muito, embarquei no ônibus mais rápido, mas quando cheguei, meu avô já tinha sido enterrado. No cemitério, fardado de branco e olhando os verdes ciprestes, fiquei lembrando a minha primeira roupa branca passada em linha verde: Sou um poeta batizado pelos mares.
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