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LIVRO: A MADRASTA DE PEDRA DE LASANA LUKATA [REVISTA BIOGRAFIA]

PRÓLOGO

No filme Balzac, do diretor Josée Dayan, 1999, encontramos as frases na fala do próprio Balzac: “Contar a si próprio não dá boa literatura. O bom escritor deve contar o sofrimento dos outros... não o que vê no espelho” Depende: Morador do Recôncavo Fluminense, há tempos venho trabalhando o tema da orfandade em vida, o subcutâneo de um enteado e seu destino. Sim, rasuradas as fronteiras dos gramáticos gregos que madrastamente separaram os gêneros, há uma narratividade nesse tema que começou a ser cantado/contado nos poemas por conta da leitura de Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta, em que ele fala da infância como material para a escritura. Olhei a minha infância e vi que as recordações não eram muito boas, mas era um material. A experiência universal mostra que a relação da madrasta com o enteado também não é muito boa, resolvi burilar o tema. Escrevi o primeiro poema na virada do século cujo título é separação de sílabas e as descobertas não pararam mais.

Um dia, brincando de pique esconde com as garotas, descobri, dentro do guarda-roupa, numa pequena pasta, a certidão de nascimento de uma mulher por nome Diamantina. Perguntei quem era e madrasta disse, sou eu, mas não gosto desse nome. A patroa registrou-me novamente com o nome que tenho agora. Aquela descoberta foi de início a minha desgraça porque onde eu estava madrasta estava me vigiando, mas dessa mesma desgraça nasceriam poemas, quando mais tarde refletindo e pesquisando, percebi que o primeiro nome de madrasta correspondia à sua personalidade: Diamantina, uma pedra. Madrasta tinha, de fato, dureza de coração e meus olhos foram se abrindo para que eu visse o material que estava ao meu redor. Na ocasião, uma índia, Jupiara, no centro do Rio de Janeiro, disse-me, em tons de oráculo, que eu tiraria água de pedra. Na hora entendi uma dificuldade a ser superada, porém mais tarde veria que não.

Aos cinquenta anos, trabalhando o tema fiz outra descoberta: eu morava na Rua da Penha, vinha de uma família de pedreiros, que trabalha a pedra, meu pai pedreiro arrumou uma mulher com nome de pedra e tive a vida dura. Ressalte-se na geomorfogenia, Penha significa rocha isolada, ideia recorrente em todo o livro através do topônimo Icaraí transfigurado em ICARA-í como símbolo do isolado, do desprezo, da exclusão, do exílio, do poeta à parte. Começava a organizar o delírio. Depois percebi que: meu vizinho da esquerda era Pedro; o dos fundos era Pedro e meus vizinhos da direita trabalhavam na pedreira, eram cortadores de pedras na Pedreira de Nova Iguaçu e falavam na linguagem da pedra, por exemplo, vai furar a pedra hoje?! No sentido amoroso. Todo esse material estava perto de mim. Uma professora de Literaturas Africanas na UFRJ, ao ler o poema separação de silabas concluiu: “é... você tinha que escrever!” O ciclo de cortadores de pedras na minha família sofreu uma solução de continuidade para eu ser cortador de palavras. Não usei a rigorosidade dórica, mas a harmônica liberdade jônica na construção dos poemas e talvez tudo o que fiz foi informar sofrimento com a leveza da criatividade.

Para arremate me veio uma última iluminação, numa tarde de outono, quando eu estava sentado escrevendo sobre o tema. O que a índia Jupiara me disse sobre tirar água de pedra, não era só uma dificuldade a ser vencida, mas algo novo, originário do próprio material: a pedra era a madrasta e a água, a poesia que sairia dela. Eis o livro.

Em a madrasta de pedra não há um movimento da trama convencional, mas a cada poema o leitor perceberá laivos de narratividade, terá a noção do acontecido que não era para ter acontecido, mas aconteceu; verá a origem do menino, o esboroamento da família original, a construção da nova família, a relação de enteado e madrasta, o sentimento em relação ao pai que flutua tragicamente entre atração e repulsa; verá que o seu destino neste áspero contexto foi interpretar as pedras. Uma severa identidade. Trata-se de uma poesia pedral. O madrastio é a pedra de toque da maternidade.


SEPARAÇÃO DE SÍLABAS

na sala de aula
quando a professora perguntava
como era a minha família
eu dizia que era um tritongo
havia cigarra
dançávamos jongo
mas a mãe se foi
a cigarra morreu
a dança acabou
a tristeza invadiu
meu pai e a mim
e viramos ditongo
mas veio a madrasta
que teve três filhos
me jogou num hiato
e fiquei feito um i
em ICARA-í


Lasana Lukata.
Poeta e escritor. Nascido em São João de Meriti, 14 de março de 1964, Dia Nacional da Poesia, na antiga Estrada de Minas; oriundo de família de pedreiros, foi marinheiro de um navio contratorpedeiro que afundou nas águas de Durban a caminho da Índia ao ser rebocado para desmanche. Coincidentemente, a vida de Lukata também afundou, de servidor federal caiu para estadual e hoje é servidor público da Prefeitura de São João do Meriti como trabalhador braçal, mas se afundaram o navio e o homem de guerra, emergiu o poeta, participando da Oficina Literária ministrada pelo poeta Ferreira Gullar em 2001, na UERJ, resultando na Antologia Poética “Próximas Palavras”; cursando Literaturas Portuguesa e Africanas de Língua Portuguesa, UFRJ
. Tem poemas publicados e traduzidos: Canadá, Itália, México, Espanha, Argentina, Uruguai, Panamá, Angola e Portugal.

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