Sponsor

AD BANNER

Últimas Postagens

MILLÔR FERNANDES, 100 ANOS: “JÁ NÃO SE FAZEM MAIS MILLÔRES COMO ANTIGAMENTE”


Millôr Fernandes, 100 anos: “Já não se fazem mais Millôres como antigamente”

No dia em que ele completaria um século, Geraldo Carneiro, Ivan Pinheiro Machado e Cora Rónai relembram histórias do jornalista, tradutor e desenhista carioca

_______________________________

Millôr Fernandes perdeu o pai ainda bebê. O engenheiro Francisco Fernandes morreu de intoxicação, aos 36 anos. Para sustentar os quatro filhos, a dona de casa Maria Viola passou a costurar dia e noite para fora e a alugar metade da casa onde vivia no Méier, Zona Norte do Rio, para uma irmã. Apenas dez anos depois, Millôr perdeu também a mãe. Vítima de câncer, tinha a mesma idade do marido ao morrer. Por muito tempo, Millôr previu que morreria em 1959, quando completaria 36 anos. Felizmente, errou sua previsão: viveu até 2012, aos 88.

No dia do enterro da mãe, Millôr Fernandes voltou do cemitério e se escondeu debaixo da cama. Lá, chorou “feito um desgraçado”. Quando terminou, sentiu um enorme alívio, que chamou, anos depois, de “paz da descrença”. “Achei, como já disse algumas vezes, que não tinha Deus coisa nenhuma. Foi como se eu tivesse concluído: agora é comigo!”, afirmou em entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira. Segundo amigos, Millôr só voltou a chorar 66 anos depois quando morreu o cachorro de estimação de sua filha, Paula, em 2001.

Com a morte da mãe, os quatro irmãos – Millôr, Hélio, Judith e Ruth – foram morar, cada um deles, com um tio diferente. Millôr passou, então, a viver com um irmão de sua mãe, Francisco, sua mulher, Maria, e quatro primos, no subúrbio do Rio, entre Pilares e Abolição. “Como já contei outras vezes, o que tinha de bom ia para os meus primos: se alguém ia ficar sem bife, claro, não eram eles”, relatou, na mesma entrevista de 2003.

Millôr Fernandes nasceu Milton Viola Fernandes. O nome artístico foi dado, involuntariamente, por um escrivão de cartório. Na hora de registrar o garoto, seu “t” mais parecia um “l” enquanto seu “n” se assemelhava a um “r”. Conclusão: Milton virou Millôr. Tem mais: Millôr nasceu no dia 16 de agosto de 1923, mas só foi registrado em 27 de maio de 1924. Na infância, só teve duas alegrias: a leitura de revistas em quadrinhos – sua favorita era Flash Gordon, de Alex Raymond – e a publicação de um desenho nas páginas de O Jornal. O mesmo tio que vendeu o desenho por 10 mil réis arranjou emprego de contínuo para o sobrinho na revista O Cruzeiro.


Infância dickensiana

“Millôr Fernandes teve uma infância digna de Charles Dickens”, define o poeta Geraldo Carneiro, numa referência a Oliver Twist, do romancista inglês. Em Folias de aprendiz, Geraldo dedica um capítulo inteiro, Áureos tempos negros, ao amigo que conheceu no réveillon de 1971 em Rio das Ostras. Nele, conta, entre outras curiosidades, que, durante a prisão dos colegas de O pasquim, Millôr escreveu o jornal inteiro sozinho (“Sabia imitar o estilo de cada companheiro”), que o amigo vivia falando mal de Machado de Assis (“Era um escritorzinho medíocre”) e gostava de contar sempre as mesmas histórias, como a vez em que visitou João Cabral de Melo Neto na Espanha (“Cabral dirigia tão mal que Millôr ameaçou apelidá-lo de O Barbeiro de Sevilha”).

No centenário de Millôr, Geraldo Carneiro se espanta ao constatar que a memória do amigo continua viva. “Ele é citado na imprensa, quase que semanalmente, às vezes, duas ou três vezes. Sua posteridade é notável”, afirma. “Millôr revogou o princípio de que o Brasil é um país sem memória. A memória milloriana é fabulosa”, destaca Geraldo que, ao lado do amigo, escreveu dois roteiros para o cinema – O judeu, dirigido por Jom Tob Azulay, e o ainda inédito Mátria – e, ainda, adaptou para o teatro sua versão para A megera domada, de Shakespeare.


Frasista genial

O jornalista e escritor Ruy Castro é um dos muitos que, volta e meia, cita Millôr em suas crônicas na Folha de S.Paulo. Na edição de 23 de julho de 2022, publicou "E aquela do Millôr?", em que cita, não uma ou duas, mas 22 frases do amigo. Estão lá: “Deus é brasileiro. Mas, para defender o Brasil de tanta corrupção, só escalando Deus no gol”, “No Congresso Nacional, uma mão suja a outra” e “Quando é que os milicos vão se convencer de que ‘civilização’ vem de civil?”. Quem apresentou Ruy a Millôr foi Paulo Francis. Em 1968, os dois colaboraram para uma revista, Diners, dirigida por Paulo. “Pelos 44 anos seguintes, até pouco antes de sua morte, em 2012, estive com Millôr dezenas, centenas de vezes. De todas saí melhor do que entrei. No mínimo, com alguma frase dele que me acompanharia pela vida”, afirmou Ruy Castro na crônica 100% Millôr, publicada no sábado, dia 12.

Noutra crônica, de 2013, Ruy fala dos dois presentes que ganhou do amigo: uma coleção da revista Pif-Paf (“Os oito números originais, de 1964, não a edição fac-símile, de 2008”) e o gauche com que Millôr ilustrou um artigo que escreveu sobre o livro Ela é carioca, que reúne 237 verbetes sobre o bairro de Ipanema, onde Millôr morava desde 1954 (“Seu verbete foi o mais difícil de fazer. Ele não cabia em verbetes”).


O garoto de Ipanema

Millôr morava em um apartamento de frente para o mar na esquina da Aníbal de Mendonça com a Vieira Souto, e trabalhava, a poucos quilômetros dali, em uma cobertura na Gomes Carneiro. Foi nos dois endereços que recebeu, em agosto de 1975, o editor Ivan Pinheiro Machado, o humorista Fraga e o desenhista Edgar Vasques. Os três encararam quase 30 horas de BR-116 para convidar Millôr a participar do livro Antologia brasileira de humor, de 1976. Não se arrependeram. Ao desembarcar no Rio, o editor da L&PM logo procurou um orelhão. “Oi, Millôr, aqui é o Ivan…”, gaguejou, na secretária eletrônica. “Sou um editor do Rio Grande do Sul e…”. Do outro lado da linha, Millôr atendeu a ligação e aceitou recebê-los em seu estúdio na Gomes Carneiro, 83.

Além de aceitar o convite, disponibilizou o contato de outros desenhistas, como Ziraldo, Henfil e Caulos. Em 37 anos de amizade e parceria, a L&PM publicou cerca de 40 livros, entre textos originais, como Millôr definitivo – A Bíblia do caos, uma antologia de 5.299 aforismos; peças de teatro, como Liberdade, liberdade, em parceria com Flávio Rangel; e traduções de autores consagrados, como Hamlet, de William Shakespeare. Dezesseis deles estão sendo relançados. “Millôr tinha uma teoria que ele chamava de ‘teoria ocasional da história’. Segundo ele, as coisas acontecem, muitas vezes, ‘por acaso’. Um pequeno detalhe pode mudar o rumo da história. Hoje, penso muito nisso. E se Millôr não tivesse nos recebido? Teríamos desistido da L&PM?”, especula Ivan.


Talento multifacetado

Escritor, dramaturgo e tradutor são apenas três dos muitos ofícios que Millôr exerceu ao longo de 74 anos. No livro A entrevista, de 2011, ele se define como “um humorista nato”. “Muita gente, eu sei, preferiria que eu fosse um humorista morto, mas isso virá a seu tempo. Eles não perdem por esperar”, arrematou. Na mesma entrevista, concedida em 1981 para a extinta revista Oitenta, se descreve com um operário (“Eu, às vezes, chego no meu estúdio às sete da manhã e trabalho até oito da noite”), confessa a frustração de não saber andar de bicicleta e define o otimista como o cara que salta do centésimo andar e, ao passar pelo oitavo, diz: “Até aqui, tudo bem”.

Além de dramaturgo e tradutor, Millôr também escreveu o roteiro para dois espetáculos do grupo MPB4: Bons tempos, hein?!, de 1979, e O MPB4 e o Dr. Çobral vão em busca do mal, de 1983. O convite partiu de Ruy, um dos fundadores do grupo. “Nossos ensaios com o Millôr eram sempre muito divertidos”, recorda o cantor e compositor Miltinho. “Era um intelectual brilhante e muito talentoso. Seu humor era cáustico e à flor da pele”.


Rato de redação

Versatilidade à parte – chegou a compor a música O homem, com que Nara Leão disputou o II Festival de Música Brasileira, da TV Record, em 1966 –, Millôr Fernandes sempre preferiu ser chamado de jornalista. E, como tal, trabalhou em incontáveis redações: dos jornais O pasquim, Jornal do Brasil e Folha de S.Paulo, e das revistas O cruzeiro, O pif-paf e Veja.

“Millôr foi um filósofo prático. Nunca construiu uma frase humorística que não contivesse uma profunda reflexão. Nunca fez uma piada ao léu. É bom lembrar, contudo, que nem toda grande reflexão contém uma verdade, mas isso não tem a menor importância em filosofia”, escreveu o desenhista Ziraldo, ex-companheiro de O pasquim, para o prefácio de Essa cara não me é estranha, uma antologia de 159 poemas, escritos entre 1945 e 1973. Das muitas frases de Millôr, Ziraldo destaca uma, ouvida numa mesa de bar, ao lado de Jaguar: “Não tive pai nem mãe. Logo, não há a menor possibilidade de eu ser neurótico”. Millôr fazia graça até da própria desgraça.

O escritor Millôr Fernandes (imagem: Acervo Pessoal)

“Nosso maior filósofo”

Outro amigo de longa data é Sérgio Augusto. “Tive a sorte de conviver com um bocado de gente culta e inteligente, mas não conheci ninguém mais versátil, estimulante e criativo que Millôr”, definiu o jornalista na crônica "Millôr estava sempre voando alto, ‘Livre Como Um Táxi’", publicada no Estadão, em 2014. “Era falante e divertido, mas não fazia o gênero ‘humorista social’, vulgo engraçadinho, que para tudo tem uma piada, a maioria sem graça”. Noutra crônica, de 2013, compara Millôr, “nosso maior filósofo”, a Bernard Shaw e a Groucho Marx. Com uma vantagem: os dois não sabiam desenhar, e Millôr era um esplêndido artista plástico.

Sérgio conheceu Millôr na redação de O cruzeiro, mas os dois só trabalharam juntos no Pasquim e na Veja. Em 2014, ano em que Millôr foi homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Sérgio Augusto foi convidado pelo Instituto Moreira Salles (IMS) para selecionar 100 frases das mais de cinco mil que ele deixou para a antologia Millôr 100 + 100: desenhos e frases, em parceria com Cássio Loredano. Algumas delas, de tão repetidas, ficaram famosas: “Desconfio de todo idealista que lucra com seu ideal”, “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos & molhados” e “Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos muito bem!”.


Exposição virtual

Se Sérgio Augusto penou para selecionar uma centena de frases entre as 5.299 escritas por Millôr e compiladas no calhamaço Millôr definitivo, a missão de Cássio Loredano não foi, nem de longe, menos hercúlea. Teve que escolher 100 desenhos entre as 6.577 obras catalogadas pelo acervo do Instituto Moreira Salles.

Em março de 2013, quando o IMS passou a cuidar da obra gráfica do autor, Júlia Kovensky, coordenadora de Iconografia da instituição, passou cinco dias no estúdio de Millôr, em Ipanema, fazendo o inventário do material. Chamou sua atenção, entre outras coisas, a organização do artista: uma prateleira só para dicionários de idiomas (uns 300, pelas contas do próprio Millôr) e arquivos de pastas por temas: de carecas a Marc Chagall, de girafas a Chico Buarque, entre outros assuntos. Além disso, boa parte do mobiliário, das poltronas às persianas, era vermelho. “O estúdio ainda estava muito bem conservado. É como se ele tivesse acabado de sair para passear. A visita foi, para dizer o mínimo, impactante”, recorda Júlia. Para comemorar a data, o IMS vai disponibilizar on-line quatro mil desenhos, entre autorretratos – um dos temas mais recorrentes de sua obra gráfica – e os originais que produziu para a seção Pif-Paf, da revista O cruzeiro, entre 1945 e 1963.


Decifrando Millôr

Paulo Roberto Pires também tem uma missão quase impossível pela frente: escrever a biografia de Millôr Fernandes. O livro já tem título e editora – Millôr do princípio ao fim e Todavia –; falta previsão de lançamento. “Millôr era um intelectual sem hierarquia. Tanto traduzia Shakespeare quanto escrevia para jornal. Não se achava melhor do que ninguém só porque traduzia Shakespeare”, afirma o editor da revista Serrote, do IMS. A ideia, explica Paulo, surgiu lá atrás quando ele, ao lado de Cássio e Júlia, começou a fazer a curadoria para a exposição Millôr: Obra gráfica, que esteve em cartaz no IMS entre setembro de 2018 e fevereiro de 2019.

À época, os três entrevistaram diversas personalidades, como a atriz Fernanda Montenegro, o desenhista Ziraldo e o jornalista Hélio Fernandes, irmão de Millôr. “Houve um tempo em que o Millôr chegou a publicar 14 colunas por semana em revistas como O cruzeiro e A cigarra”, relata Paulo. “Seu maior pavor era passar pelas provações que passou na infância. A partir dos 17 anos, isso nunca mais aconteceu. Mas, quando tinha 15 ou 16, chegou a desmaiar de fome na redação. Trabalhava compulsivamente para ganhar dinheiro e ter uma vida boa”.


Felicidade extraordinária

No programa Roda viva, exibido em 1989, quando indagado pela jornalista Cora Rónai, então repórter do Jornal do Brasil, se era feliz, Millôr responde: “Sou extraordinariamente feliz”. Cora conheceu Millôr em 1981, numa festa na casa do editor Alfredo Machado, da Record. “Tinha opiniões originais, ideias únicas e pontos de vista surpreendentes”, descreve sua ex-companheira. “Durante a vida inteira, a gente sempre se lembra de conversas em que podia ter dito isso ou aquilo. Millôr não tinha esse tipo de arrependimento. Tinha sempre a frase certa no momento certo e era, em geral, algo muito engraçado porque o que dizia era sempre inesperado”.

Millôr Fernandes morreu no dia 27 de março de 2012, de falência múltipla dos órgãos, em sua casa em Ipanema. Um ano antes, sofreu um acidente vascular cerebral isquêmico e chegou a ser internado por duas vezes na Casa de Saúde São José, no Humaitá. Até no hospital, Millôr fazia graça. Ao visitá-lo, Geraldo Carneiro ficou chocado ao ver o amigo submetido a uma traqueostomia. Como a visita não dizia nada, o paciente pediu que cantasse. “Cantar o quê?”, perguntou Geraldo. “Se todos fossem iguais a você”, escolheu Millôr. Diante da desafinação, Millôr interrompeu a cantoria: “Chega! Arranja alguém melhor para cantar…”. E Geraldo arranjou: Olivia Byington, que atendeu ao desejo do Millôr. “Já não se fazem Millôres desde 1923. Ele foi único", afirma Cora.





_________________________

Nenhum comentário