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Eu sinto muito, mas eu não sinto nada....[Clara Averbuck]

Eu sinto muito, mas eu não sinto nada....



Tenho que discordar do Leminski naquele Nenhuma dor pelo dano/ todo dano é bendito/ Do ano mais maligno/ Nasce o dia mais bonito.


Tive uns anos do cão. Só a gente sabe dos danos que essa vida nos causa. E eu, olha, eu fiquei totalmente danificada. Algumas pessoas deixam um rastro tão nefasto na vida de outras que não consigo ver de outra forma senão essa: um dano. Um rasgo. Um aleijão. E não, não passa. Nada passa. Tudo que nos acontece fica marcado de uma forma ou de outra em algum lugar. A gente pode até achar que passa, pode achar isso nos momentos bons, mas aquilo fica lá, entranhado em você. Trauma pode se manifestar em forma de raiva, de desprezo, pode virar uma repetição de padrão destrutiva, pode te deixar pra sempre com medo, pode te fazer ficar por demais destemido. O que consigo ver que aconteceu comigo é o seguinte: eu sequei. Me sinto toda esfarelada. Danificada. Rachada como um terreno arenoso onde é necessário um instinto filho da puta pra poder sobreviver. Até nasce uma coisinha ou outra ali, mas qualquer coisa mais delicada murcha e morre rapidinho. É assim que eu ando me sentindo. Calcificada por dentro.

Quando eu tinha 22 anos, me apaixonei afú pela primeira vez. Foi meu primeiro dano. Outros vieram depois, eles sempre vêm. Mas o primeiro é o primeiro. Ele dizia que não tinha coragem pra se apaixonar, ele dizia que amor não, que amor ele passava. Sabe o que eu disse pra ele?

Coragem pra se apaixonar? Se quiser, posso te ensinar a sentir dor. Eu sei sentir dor e sobreviver a ela de uma maneira que nem eu acredito. Eu nunca vou cansar disso, nunca vou precisar de coragem pra me apaixonar porque preciso de paixão pra escrever. Se for pra escrever sem paixão, então eu vou ali no jornal escrever sobre turfe e ganhar dinheiro, e não ficar fodida como estou só pra poder passar o dia inteiro escrevendo, sem sair de casa, sem sentir o vento na cara, só escrevendo escrevendo escrevendo como uma filha da puta. Porque é isso que eu faço. Eu escrevo o dia inteiro, eu acordo e vou escrever, eu acordo pensando nisso e durmo pensando nisso. Mas se não tivesse paixão, não ia adiantar porra nenhuma.

Já disse uma vez e vou dizer mais um bilhão de vezes: eu quero você. Vou dizer até você aparecer na minha casa esmurrando a porta, porque a campainha não funciona, vou dizer até te ver deitado e suado na minha cama, vou dizer até poder te engolir, até sentir a tua porra na minha boca, até sentir o teu peso em cima de mim. Vou dizer até te convencer de que a solidão é muito, muito mais dolorosa do que qualquer paixão. O nada é a pior coisa que pode acontecer. O nada é seco, é uma árvore esturricada na beira da estrada, é uma plantinha sozinha no meio do deserto, uma plantinha que sabe que vai morrer ali, seca e sozinha.

Então vem. Porque eu sou a sua Camila e você não pode me deixar deitada na praia, senão vai passar o resto da sua vida se arrependendo. Então vem. Porque você me ganhou e eu quero que você minta pra mim, na minha cara, olhando nos meus olhos enquanto me come. Vem. Eu sou sua.

Isso era eu em 2001. Uau, ein? Que força, que furacão. Eu era, eu era. Once a fire. Sinto que não sei mais sentir, não sei mais me deixar sentir, não sei mais me entregar. EU NÃO SEI MAIS ME ENTREGAR. Nem por duas horas. Nem por meia hora. Fingir eu nunca soube mesmo, e nem quero aprender. Nunca pensei que passaria por isso. Eu achava que seria pra sempre a impetuosa jovem das linhas acima, que quebrava a cara repetidamente e levantava e levantava e cuspia sangue e dizia bring it on, you mfcks. Não quebro mais a cara porque não caio, e se cair, não tem sangue pra jorrar, não tem coração pra bater, não tem porra nenhuma há anos. Eu até tentei mentir que tinha e só consegui sentir ódio. Ódio de mim, ódio daquilo tudo onde eu tinha me metido nem sei como e uma frustração inenarrável. Acho que sequer posso dizer que aquela era eu. Era um pedaço, um fragmento pequeno e incompleto de mim que jamais vingaria. Bom, eu tentei.

Eu sinto muito, mas eu não sinto nada.

(...)

Clara Averbuck -Escritora, letrista, vocalista, blogueira, iconoclasta e polemista, Clara Averbuck é uma espécie de anti-heroína da internet brasileira. Começou a escrever em 1998, para o lendário “CardosOnline”, o primeiro mailzine brasileiro. Tornou-se autora de quatro livros: “Máquina de Pinball”, “Das Coisas Esquecidas Atrás da Estante”, “Vida de Gato” e “Nossa Senhora da Pequena Morte”.Atualmente, é redatora do Portal R7 e faz um programa diário com Alessandra Siedschlag, do blog “Te Dou Um Dado?”.

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