Pam Orbacam nasceu em Santo André, São Paulo, em 1970.
É formada em Pedagogia pelo Centro Universitário Fundação Santo André e em desenho artístico pelo Escola Poliarte de São Paulo.
Tem páginas individuais nos sites “Blocos Online” e Garganta da Serpente”. Participou de antologias digitais e impressas.
Teve publicada a poesia “Minha Cidade” na “Agenda Cultural” da Prefeitura de Santo André.
É prêmio prata no concurso internacional de poesias José Lins do Rego 2007.
Ficou entre os vinte poetas classificados no V Concurso Literário VIRaRTE - 2008.
Participou do CD “Todos Por um – 2008” produzido pela ARCA (Associação Ribeirãopirense de Cidadãos Artistas) com as poesias “Minha Morte” e “Alguma Coisa Assim”.
É membro da Academia Virtual Brasileira de Letras e sócia do Movimento Virarte.
Foi expositora individual de artes plásticas e literatura na 1ª Jornada de Ações Sociais ABCD Maior.
Em 2008 foi convidada a participar de dez antologias, com contos e poesias pelas editoras Andross (Vide Verso e Entrelinhas), Blocos online (Saciedade dos Poetas Vivos), Câmara Brasileira de Jovens Escritores (Antologia de Contos Fantásticos e Antologia de Poemas), Coletâneas Komedi, AVBL (Mulher Cidadã), Antologia de Poesias Valdeck Almeida de Jesus, Mar de Idéias (II Antologia Nacional de Poesia “Novos Poetas, Novos Talentos”)e Movimento Virarte 2008 – (Efervescência). Nesta última, teve participação também na capa do livro com uma de suas obras plásticas.
A minha cidade
A minha cidade tem cores, flores e odores
Anjos que beijam flores
Odores dos mais diversos
Cores que criam poemas
E homens que fazem histórias.
A minha cidade tem sons, silêncios e luzes
Palavras faladas, que ora gritam, outrora sussurram
E palavras escritas, que ora assustam, outrora emocionam.
Mas minha cidade também tem pés.
Pés que acariciam e marcam o chão;
Pés cansados de tanto trabalho
E pés pequeninos, que carimbam cartões de boas-vindas.
Além disso, a minha cidade tem sabores.
Sabores que salivam a boca
E até sabores de fazer careta.
No mais, a minha cidade tem muitos nomes.
Nomes oriundos de vários lugares:
João, José, Severina,
Maria, Ana, Antônio;
E também tem nome de santo:
Um santo chamado André
***
Sede
Lembrei-me de coisas bobas. Do primeiro beijo, da inexperiência sexual refletida na boca salivante transbordando de secreção vaginal por entre as coxas da esposa do vizinho no chão do quintal de terra úmida de chuva, do esguicho de água do dentista daquela única vez em que estive num consultório dentário...
Meus lábios antes secos, agora estavam úmidos de sangue devido às rachaduras. Eu passava a língua áspera pelos lábios e recolhia o sangue vorazmente. Também abria e fechava a boca ao máximo repetidas vezes para que meus lábios secos se rachassem e sangrassem ainda mais, e lambia, lambia vorazmente o sangue. De vem em quando eu parava por alguns minutos para que os lábios voltassem a secar (e torcia muito por isso) e então repetia o ritual de auto vampirismo.
Meus pés descalços pisavam no chão duro de terra seca onde antes era um rio, mas hoje parecia um grande paraíso de pedaços de ovos de chocolate de páscoa. Pascolândia. Bom, muito bom! Meus pés descalços no chão duro e quente provavelmente provocariam o aparecimento de bolhas. Estava ansioso por esse momento, pois a idéia de cravar os dentes nas bolhas e chupar a sua água para saciar a sede só não me fazia salivar porque meu corpo já era uma uva passa.
A língua grossa e seca dentro da boca era como uma serpente a me engolir de dentro para fora e as raras vezes que eu urinava, tinha o cuidado de recolher na cuia empoeirada cada gota do precioso líquido. Era preciso beber de imediato a urina quente, antes que evaporasse.
Quando demorava demais a urinar e a língua grossa estava seca a ponto de sentir cada poro de papila gustativa, punha-me a me masturbar. A ejaculação forçada custava a vir. Era necessário buscar nas gavetas ressequidas do meu cérebro lembranças distantes dos fartos seios cheios de leite de minha esposa já levada pela seca, assim como foram os meus filhos. E a lembrança do mais novo sugando esfomeadamente seus seios que minavam leite viscoso que escorria pelos cantos da pequenina boca facilitavam o escasso gozo, que também era cuidadosamente recolhido na cuia urinada.
Eu me bebia sempre que possível, fosse qual fosse o líquido expelido pelo meu corpo. Eu eliminava líquidos corpóreos que eram imediatamente recolocados de volta no meu corpo através da boca sedenta sem saliva.
Lambuzava-me e regozijava-me com “bebidas” que jamais imaginei beber.
Minha urina tinha o sabor da melhor das cachaças, meu sêmen o sabor do mais rico leite de cabra e degustava meu sangue como se fosse o melhor dos vinhos tintos dos deuses.
E segui, assim como seguiu a seca, até o dia em que eu sequei e caí no chão da Pascolândia junto aos ossos de minhas cabras.
***
Luz
O cheiro e a umidade deixaram saudades.
O cheiro e a umidade agora se foram
E o rosa tão rosa das rosas agora é pálido
Como um anêmico crônico na ânsia por sangue fresco e quente,
Embora as borboletas nadem com sincronicidade no ar,
Embora as estrelas continuem a iluminar o céu,
Mesmo que mortas, mesmo que mortas.
***
Chuva
Chove.
Eu olho para o céu
Pescoço em seta
E não vejo de onde ela vem.
Brota no ar a chuva
Ou esconde sua nascente?
Molha ela meus olhos
Para que eu não a veja surgir?
Lacrimeja o céu em meus olhos
E me cega para sua raiz.
***
Casulo
Viver em silêncio. Doce silêncio.
Ruído nenhum. Nem luz, nem sombra.
Só a brisa do tempo.
Olhos fechados, assim como o corpo.
Silêncio sem movimento.
Sem fome, sem sede. Sem ninguém que abale meu terno silêncio.
Doce silêncio, doce sono, só sonhos...
Sonhos de um sono só.
Sozinha em minha cama, eu: pós lagarta, pré borboleta.
***
Apelo
Vinhas
Rosa e quente
Úmida e latente.
Vias
Entre cílios e pupilas
Saliva e lágrima.
O cálice seco,
A vulva molhada.
Hálito de vinho
Sussurrava
Apelo.
***
ANALOGIA
Onde o sol jaz
E as palavras se dissimulam
Não há calor.
O juízo trepida
O olho entorpece
E a carcaça teima posicionar-se na vertical.
Onde a lua reverencia o escuro que a cerca
E as estrelas são velas caravelas
Que navegam sem discernimento
O frio abraça doce.
E eu amo.
Penso que estou
Imagino que sou
Porque se fosse
Jamais amaria
Por isso a certeza voraz que
Tudo não passa de falsa identidade.
***
ANA
Adorava flores. Passava horas a olhar e uma pergunta sem resposta incomodava seus pensamentos: como a natureza havia encontrado um jeito de amoldar com tamanha perfeição uma pétala na outra?
Acreditava que as flores tinham personalidade. Cada qual tinha a sua, singular. Percebia isso através do perfume que exalavam. As mais meigas espalhavam um aroma adocicado, as mal humoradas aromas mais cítricos, e as rosas... Ah! As rosas... Exalavam um perfume único. Elas eram quase perfeitas! Tinham personalidade marcante. Eram belas até quando secas, já sem vida. Perdiam apenas para a delicadeza das margaridas, essas sim alvas, longilíneas, com firmes hastes que sustentam toda a sutileza e a simplicidade de apenas uma única flor de alvas pétalas bucolicamente desenhadas. O perfume, assim como a personalidade, era selvagem. Quando em bandos, formavam uma arquitetura de causar inveja a qualquer outra flor. Toleram o sol, a chuva e a terra seca sem ceder. Flor de personalidade única, apenas os mais sensíveis cediam aos seus encantos naturais. Esse era o caso de Ana.
Ana admirava especialmente as margaridas por serem flores que além de todas essas qualidades ornamentava os campos que rodeavam sua casa desde que nasceu ali, naquela pequena vila de rua ainda não pavimentada. Era com elas que Ana enfeitava a mesa da copa, a mesinha de centro da sala e os cabelos de sua mãe. Fazia isso todos os dias após se levantar e debruçar os cotovelos sobre o batente da janela que dava vista para a rua. Fechava os olhos, aspirava até o último fôlego o perfume das margaridas e só então abria os olhinhos amendoados e presenteava a alma com a sua beleza. A vizinha da casa ao lado, Dona Nena observava quieta cada gesto. Achava engraçada a careta que Ana fazia ao cheirar as flores. Ria baixinho enquanto varria a calçada de terra batida destruindo os formigueiros que insistiam em emergir e gritava para Ana: “Ei Aninha! Tome tento! Do jeito que cheira as flores vai acabar com o cheiro delas. Vá logo! Colha algumas e leve pra dentro de casa! “ Ana saltava como um sapo e corria descalça diretamente para o canteiro. Saía de lá carregando um ramalhete que mal conseguia segurar. Abraçava as flores, esticava o fino pescoço por cima do ramalhete e arregalava os olhos, tentando enxergar o caminho de volta.
Ana vivia com sua mãe Violeta, mulher guerreira que dedicou os melhores anos de sua vida à criação e educação da filha. Não se importava por ter passado seus anos dourados lavando fraldas, fazendo papinhas e assando biscoitos para vender. A venda dos biscoitos era essencial para o sustento de sua pequena. Sovava a massa enquanto embalava Aninha numa tira amarrada transversalmente pelo corpo. Se chorasse de fome, a amamentava enquanto enrolava os biscoitinhos para colocar na forma. Era só saltar o peito para fora do vestido e ela ficava quietinha. Violeta sorria ao ver a filha sugando seu peito. Ver Ana saudável e gulosa lhe dava mais força ainda para enfrentar a batalha diária da sobrevivência.
Margaridas, biscoitos, Violeta e Ana.
Ana veio ao mundo quando Violeta já não tinha mais esperanças de ser mãe. Um dia aconteceu uma reviravolta em sua solitária vida. Violeta, aos quarenta e cinco anos apaixonou-se por um caixeiro viajante que lhe pediu abrigo em uma noite de torrencial tempestade. Com pena do pobre homem e também timidamente atraída e encantada pela sua fala mansa e doce, inocentemente entregou-lhe todo o seu amor naquela noite. Ele se foi e Violeta embarrigou. As margaridas então brotaram no quintal e por toda a redondeza da casa, apagando o rosa das rosas. Eram tantas, que as roseiras secaram, cedendo lugar a elas. Desde então elas nunca se fizeram ausentes da vida de mãe e filha.
Violeta viveu toda sua vida em meio às margaridas que Ana colhia para enfeitar a casa. Ver mamãe rodeada pelas flores alegrava o coração de Ana, principalmente quando a surpreendia carinhosamente ajeitando as margaridas nos vasos e assoviando uma canção que ela não sabia qual, mas que sempre ouvira, desde pequenina. Fazia isso várias vezes ao dia, antes de sair para a venda com as sacolas cheias de biscoitos e também ao chegar em casa com as sacolas vazias. “O vento despenteia minhas flores”, dizia entre um assovio e outro, “Gosto delas assim, bem ajeitadas”.
Violeta tinha uma mania esquisita de escalpelar o canteiro em frente à casa todos os dias ao sair para a venda. Arrumava um buquê bem bonito, escolhia as maiores e mais cheirosas e entregava à Ana para que carregasse. “Ana, você é quem leva o buquê, certo?”. Sorria. No meio do caminho, passavam pelo cemitério da cidade. Paravam, entravam, e Violeta então juntava o buquê no peito, cheirava longamente as margaridas e só então, de olhos bem fechados, soltava as flores pelo ar, que bailavam no vento e caíam onde o vento deixava. “É para acalentar os mortos”, dizia.
Margarida olhava tudo calada. Não entendia direito, mas achava bonito. Após certo tempo, como aquele gesto passara a se tornar um ritual da mãe, algumas mudas de margaridas brotaram no cemitério e notava-se a propagação delas por todo o terreno dos mortos. Mesmo assim Violeta repetia diariamente seu ritual sem falhar sequer um dia, até que Ana, intrigada, resolveu questioná-la: “... Mas mamãe, porque trazer mais flores pra cá, se o cemitério já está lotado delas? O canteiro em frente de casa já está quase sem flores, enquanto que o cemitério está cada vez mais florido. Vamos levar umas mudas dessas aqui para plantas de volta no canteiro?”. Ana ficava incomodada com o canteiro rarefeito em frente de casa.
Enfim, como quem pergunta quer ouvir uma resposta, esta veio. Violeta olhou bem dentro de seus olhos, pegou uma de suas mãos e disse vagarosa e placidamente: “Não se leva para casa as flores dos mortos. Eles podem sentir falta delas e certamente saberão onde estão e quem as pegou. É muito provável que se isso acontecer, que eles venham até em casa buscá-las. Nunca - se esqueça - disso.” Ana sentiu um arrepio, mas respeitou a fala da mãe e nunca, nunca mais após essa conversa questionou seu ritual, muito menos arrancou sequer uma margarida para replantar no canteiro em frente de sua casa. Seguiram viagem.
Passados quatro anos o calor do forno e a rotina dura de machado, lenha e carreira nas estradinhas para vender os biscoitos nos mercadinhos fizeram de Violeta uma mulher muito doente. Ana a ajudava a manter o sustento, untava as formas com banha e enrolava os biscoitinhos, alimentava as galinhas, limpava o chiqueiro, mas a tarefa pesada de cortar a lenha e sovar a massa ainda ficava por conta de Violeta, pois a pouca idade de Ana não permitia que ela tivesse força suficiente para fazê-los.
Violeta infelizmente ficou muito doente dos pulmões, pois no inverno a alternância entre o calor do forno e o vento gelado e úmido típico da região onde moravam provocou uma grave doença em seus pulmões. Violeta já não comia, emagreceu, tossia, gemia e foi ao lado de um vaso cheio de frescas margaridas, deitada em seu colchão fino, com o cabelo cuidadosamente adornado de margaridas que Violeta morreu, segurando a pequenina mão de sua menina. Morreu sem dizer nada. Apenas respirou fundo o aroma das margaridas e morreu.
Foi enterrada no dia seguinte pela manhã. Ana a arrumou cuidadosamente no caixão cobrindo seu corpo nu de margaridas e ajeitou a mais delicada entre suas gélidas mãos. Seu túmulo era simples, apenas uma cruz com sua foto colada bem ao centro, abaixo, a data de nascimento e a de falecimento. Os donos das vendas onde Violeta vendia os biscoitos custearam os gastos com o funeral, e Ana então voltou pra casa sozinha.
Após a morte de sua mãe, Ana comia na casa de Dona Nena, sua vizinha, que a chamava todos os dias pelo almoço. Dormia no colchão fino de sua mãe, agora só, no entanto todos os dias ao acordar, continuava a debruçar-se sobre a janela para olhar as margaridas do entorno, como sempre fizera quando Violeta era viva. Fechava os olhos, sentia o aroma e lá ia ela, colher as margaridas para enfeitar a casa. Colocava doze margaridas no vaso da mesa da cozinha, sete no vasinho da mesa de centro e uma, apenas uma ela colocava sobre o fogão. Varria o chão, arrumava um buquê e levava para o cemitério. Todos os dias.
Lá, Ana sentava ao pé da sepultura de sua mãe com as flores nas mãos, alisava a terra batida afastando as folhas secas caídas das árvores, tirava cuidadosamente os chinelos e conversava com Violeta. Falava sobre a casa, dizia que estava cuidando direitinho dela, deixando bem limpinha e florida como sempre, do jeito que ela gostava. Ressaltava que nunca se esquecia da flor de seu cabelo: sempre a colhia e a colocava sobre o fogão, mas que ela não ficava tão bonita quanto no cabelo dela... Dizia também que os porcos, ah... Os porcos ela teve que dar para a vizinha Nena, aquela que fazia almoço para ela todos os dias, e que assim também fez com as galinhas, mas que sempre passava por lá para vê-los e alimentá-los. Fazia questão. E a vizinha... A vizinha era boazinha, gentil, mas não cuidava dos porcos e das galinhas como ela, isso não!
Ana repetia esse ritual de visita ao túmulo da mãe todos os dias. Ficava lá por volta de uma hora, de tanto que falava. Depois se despedia, calçava os chinelos e deixava as margaridas sobre o túmulo de terra.
Alguns meses depois da morte da mãe Ana notou que algumas margaridas fincaram raiz em seu túmulo e começavam a brotar. Achou bonitos os botões prestes a desabrochar. Após esse dia ao invés de apenas deixar as flores sobre o túmulo, passou a plantá-las. Incrivelmente todas as margaridas brotavam. Inicialmente curvavam-se, murchas, entretanto no dia seguinte já estavam firmemente olhando para o céu, alvas, pétalas abertas, folhas verdes.
Ana lembrou-se especialmente daquele dia em que havia questionado sua mãe sobre replantar as margaridas do cemitério no canteiro em frente de casa e também sobre o que havia sido alertada. Sentiu leve arrepio nas costas. Nesse dia ficou pouco tempo sentada em frente ao túmulo, mas conversou com sua mãe sobre o recordado. Disse à ela que, se os mortos realmente sentiriam falta das flores levadas do cemitério e saberiam certamente quem as levou e onde estavam, achava que não faria mal levar apenas uma margarida de seu túmulo para casa...
Seu ritual mudou a partir desse dia. Continuou a visitar o túmulo de Violeta diariamente, no entanto ao invés de levar margaridas passou a ir sem elas. Conversava como sempre com sua mãe. Contava os causos da vila, da vizinhança, da casa arrumada, dos porcos e das galinhas e do quanto sentia sua falta. Despedia-se saudosa, e cuidadosamente arrancava uma margarida do túmulo de Violeta e a levava para casa, saltitante e com o coração cheio de esperança, assoviando a canção de sua mãe.
***
Acidez
Verdade cítrica
Saliva a boca
Num prazer agro.
Sorriso oculto
Nos olhos críticos
Do que profere.
Não é um teste
É tão somente
O deleite que dói
O que equilibra
Ou desequilibra,
O que confirma
Que fato e medo
São insolúveis.
Pam Orbacam
Todos os Direitos Autorais reservados a autora.
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