Saudade do Vinícius
Eu devia ter 12 ou 13 anos de idade quando descobri Vinícius de Moraes. Embora ele sempre estivesse lá, as mãos firmes na capa de um dos seus LPs durante minha infância, precisei virar mocinha para que suas palavras entrassem aqui dentro. Que estalo, meus caros...
Porque, de repente, havia um homem que cantava o amor. Uau! Homem também sentia. E além disso, um homem que falava de uma mulher que era pura beleza. Ela podia ser forte e delicada ao mesmo tempo. Ela podia ser bonita e livre. Ela podia chorar e rir, até se descabelar, que não tinha problema.
Ah! Ela podia tanta coisa...
Para uma menina com uma flor - que li e reli e li mais um tanto - foi um mundo novo. Era eu na capa, obviamente... E lá dentro, os amigos, a camaradagem. Lá dentro, a casa da família. Lá dentro, o tempo e aquela mulher. Ah, aquela mulher que eu seria um dia. E como a invejei porque o poeta já ocupava o podium do meu coração e eu sabia, não íamos nos encontrar...
Resultado: ouvi cada um dos seus conselhos!
Então a vida era uma flor que ia crescendo, crescendo, de dentro pra fora... Então amar doía, mas era bom... Então não tinha problema beijar um menino e, depois de muitos anos, deixá-lo passar a mão... Mas tinha que ter coragem porque haveria a paixão... Haveria a amizade... Haveria o trabalho... Haveria o prazer... E o amor de verdade... Aliás, haveria a verdade.
E assim foi, é ou quem sabe um dia seja.
De qualquer forma, jamais me distanciei dessa presença.
A voz do poeta que eu citava a torto e a direito. A voz que eu esperava encontrar nas linhas tortas do tempo. Como briguei por causa dele. Muitos vinham com aquela história de poeta menor o comparando com outros.
Conversa!
A voz do Vinícius sempre foi a voz do Vinícius. A voz do meu Vinícius em sua presença, peso, aroma, beijo, abraço, carinho, dor. Esta que até hoje tira um sarro danado aqui dentro, quando faço bobagem. Esta que ainda me impulsiona quando eu me retraio. Esta que me acarinha quando piso em falso. Esta que vinte e tantos anos depois, ainda procuro.
E querem me convencer que ela, sempre tão perto, está longe... Como? Se a gente se abraça sempre? Agora há pouco, por exemplo, ao abrir sua Poética, papeei tanto com ele... Este "meu tempo é quando..." é de uma beleza:
Poética I
Vinícius de Moraes
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.
Em nome deste "quando", o texto que definitivamente roubou o coração daquela garota:
Para uma Menina com uma Flor
Vinícius de Moraes
Porque você é uma menina com uma flor e tem uma voz que não sai, eu lhe prometo amor eterno, salvo se você bater pino, o que, aliás, você não vai nunca porque você acorda tarde, tem um ar recuado e gosta de brigadeiro: quero dizer, o doce feito com leite condensado.
E porque você é uma menina com uma flor e chorou na estação de Roma porque nossas malas seguiram sozinhas para Paris e você ficou morrendo de pena delas partindo assim no meio de todas aquelas malas estrangeiras.
E porque você sonha que eu estou passando você para trás, transfere sua d.d.c. para o meu cotidiano, e implica comigo o dia inteiro como se eu tivesse culpa de você ser assim tão subliminar. E porque quando você começou a gostar de mim procurava saber por todos os modos com que camisa esporte eu ia sair para fazer mimetismo de amor, se vestindo parecido. E porque você tem um rosto que está sempre um nicho, mesmo quando põe o cabelo para cima, parecendo uma santa moderna, e anda lento, e fala em 33 rotações mas sem ficar chata. E porque você é uma menina com uma flor, eu lhe predigo muitos anos de felicidade, pelo menos até eu ficar velho: mas só quando eu der uma paradinha marota para olhar para trás, aí você pode se mandar, eu compreendo.
E porque você é uma menina com uma flor e tem um andar de pajem medieval; e porque você quando canta nem um mosquito ouve a sua voz, e você desafina lindo e logo conserta, e às vezes acorda no meio da noite e fica cantando feito uma maluca. E porque você tem um ursinho chamado Nounouse e fala mal de mim para ele, e ele escuta e não concorda porque ele é muito meu chapa, e quando você se sente perdida e sozinha no mundo você se deita agarrada com ele e chora feito uma boba fazendo um bico deste tamanho. E porque você é uma menina que não pisca nunca e seus olhos foram feitos na primeira noite da Criação, e você é capaz de ficar me olhando horas. E porque você é uma menina que tem medo de ver a Cara-na-Vidraça, e quando eu olho você muito tempo você vai ficando nervosa até eu dizer que estou brincando.
E porque você é uma menina com uma flor e cativou meu coração e adora purê de batata, eu lhe peço que me sagre seu Constante e Fiel Cavalheiro.
E sendo você uma menina com uma flor, eu lhe peço também que nunca mais me deixe sozinho, como nesse último mês em Paris; fica tudo uma rua silenciosa e escura que não vai dar em lugar nenhum; os móveis ficam parados me olhando com pena; é um vazio tão grande que as mulheres nem ousam me amar porque dariam tudo para ter um poeta penando assim por elas, a mão no queixo, a perna cruzada triste e aquele olhar que não vê. E porque você é a única menina com uma flor que eu conheço, eu escrevi uma canção tão bonita para você, "Minha namorada", a fim de que, quando eu morrer, você, se por acaso não morrer também, fique deitadinha abraçada com Nounouse cantando sem voz aquele pedaço que eu digo que você tem de ser a estrela derradeira, minha amiga e companheira, no infinito de nós dois.
E já que você é uma menina com uma flor e eu estou vendo você subir agora - tão purinha entre as marias-sem-vergonha - a ladeira que traz ao nosso chalé, aqui nessas montanhas recortadas pela mão de Guignard; e o meu coração, como quando você me disse que me amava, põe-se a bater cada vez mais depressa.
E porque eu me levanto para recolher você no meu abraço, e o mato à nossa volta se faz murmuroso e se enche de vaga-lumes enquanto a noite desce com seus segredos, suas mortes, seus espantos - eu sei, ah, eu sei que o meu amor por você é feito de todos os amores que eu já tive, e você é a filha dileta de todas as mulheres que eu amei; e que todas as mulheres que eu amei, como tristes estátuas ao longo da aléia de um jardim noturno, foram passando você de mão em mão até mim, cuspindo no seu rosto e enfrentando a sua fronte de grinaldas; foram passando você até mim entre cantos, súplicas e vociferações - porque você é linda, porque você é meiga e sobretudo porque você é uma menina com uma flor.
Dá pra resistir? Digam o que quiserem, o que eu sinto pelo Vinícius é saudade.
Tatiana Carlotti - Balzaquiana convicta e amante das letras. Pulsa no Centro de São Paulo ao lado do Balzac, seu gato. Acredita na força da delicadeza e na densidade da leveza. Ama bastante. Ainda sonha... Site: SobremargenS.
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