SESSÃO NOSTALGIA: MÁQUINAS DE ESCREVER
Mandei o computador para o conserto. Não tenho a mínima idéia do que foi que aconteceu. Algum problema com alguma peça. O técnico tentou me explicar. Ou me enrolar. É a mesma coisa. Não entendi nada daquela conversa para boi dormir. Movido pelo tédio, tive dificuldade para controlar os bocejos.
Pedi um orçamento. Ao ver os números, tive um susto, reclamei um pouco. A sociedade descartável que nos envolve está cada dia mais predatória. Enfim, depois dessa cena ridícula e completamente desnecessária, entreguei os pontos e algum dinheiro. Fui embora, sentindo saudades. Não do computador. Das máquinas de escrever. Durante muitos anos, uma Olivetti Lettera me acompanhou pelas desventuras da vida: éramos uma dupla romântica, combatendo as injustiças do mundo. Quer dizer, sobrevivendo ao grandioso espetáculo da vida. E, mais importante, ela nunca me deixou na mão.
O barulho da alavanca sendo acionada, logo depois de ouvir a campainha anunciando o fim da linha, caramba, aquilo era música. E da melhor qualidade! Tinha também a carícia agressiva que era acionar a tecla, o carácter marcando o papel, a lúcida brincadeira lúdica com a folha em branco (transformada em suporte para o texto), o milagre da literatura diante dos nossos olhos. Claro, trocar a fita da máquina era chato, sujava os dedos. Mas, para quem gosta de sentir o esplendor do corpo amado, não era ruim. Muito pelo contrário. A escrita manual é muito pior, quem tem letra ruim vive a encenar metáforas onanistas brochantes.
Em algum momento da vida, como sempre acontece na vida amorosa contemporânea, substitui a velha companheira por companhia mais nova. Dessa vez foi uma Olivetti Praxis 20, elétrica. Formamos um belo casal. Dava vontade de tirar fotografia e mandar publicar em coluna social. Foi com ela, na temporada em que morei em Florianópolis e Itapema, que escrevi a dissertação de Mestrado.
Mas, esse amor, como se fosse a crônica de uma morte anunciada, estava condenado. Um inefável computador 486, estalando de novo, mostrou que a modernidade estava conectada em nossas vidas. Na minha e na da máquina de escrever. Para ela, o depósito de lixo. Para mim, escrever ficou mais fácil. Corrigir ficou mais fácil. O texto se tornou mais higiênico, sem as marcas produzidas pelo acionar a tecla errada, sem as cicatrizes causadas pelos “corretores”. Minha péssima dedografia teve orgasmos quando descobriu as funções “control C” e “control V”. A possibilidade de mudar a ordem dos parágrafos sem precisar trocar o papel da máquina - e recomeçar tudo outra vez - foi uma espécie de triunfo do sobrenatural sobre a natureza humana.
Alguns anos depois, quando escrevi a tese de doutorado, mais de 800 páginas de texto, centenas de notas de rodapé, quase mandei carta elogiosa aos inventores do Windows. Queria chamá-los de gênios e heróis modernos. Foram minhas poucas noções políticas que impediram esse desatino. O capitalismo não precisa de incentivo. Muito menos do meu.
Como tenho nítida aversão à tecnologia, resisti o quanto pude aos computadores portáteis. Resisti. Inutilmente. O primeiro a gente nunca mais esquece. As facilidades geradas pelo deslocamento não têm preço. E o pior é que não mais consigo viver sem ter um por perto. É uma imagem decadente. E, portanto, triste, muito triste.
Talvez seja esse descompasso que resultou na nostalgia. Escrever no computador é mais fácil, mais rápido, mais solitário. Escrever à maquina era complicado, demorado e quem estava escrevendo nunca se sentia sozinho. Os barulhos produzidos pelo acionar do mecanismo era uma lembrança inexorável da amizade, tão importantes como um cigarro ou um copo de whisky. Embora eu não fume e deteste whisky, é preciso lembrar que, nestes tempos do “politicamente correto”, onde tudo é silencioso, insípido, incolor e inodoro, o cigarro se tornou sinônimo da vilania e o whisky - há muito tempo - deixou de integrar o perfil ideal para um escritor. E escrever... bem, escrever é uma tarefa tão difícil quanto pagar as contas ao final do mês.
Fiquei sem computador alguns dias. Desesperado, quase comprei outro. Apesar de ter o orçamento comprometido, imaginei que poderia parcelar um novo no cartão de crédito. Suaves trezentas prestações mensais. Não foi preciso. Fui salvo desse devaneio por um telefonema do técnico em informática. Disse-me que havia salvação. E relativamente barata. Ufa!
Dessa crise ficou um desejo não realizado. Em alguns momentos, pensei em adquirir outra máquina de escrever. Semana passada, vi - em uma vitrina - uma bem bonita. Quase entrei na loja de artigos usados, assim como quem não quer nada e ambiciona ter tudo. Tenho certeza que, depois de conversar com o vendedor e ser informado do preço, não conseguiria esboçar a mínima resistência à tentação. Principalmente, se ele me assegurasse que acompanhava a máquina umas duas ou três fitas de escrever e uma resma de papel.
Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”.
Todos os direitos autorais reservados ao autor.
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