De mal em mal, mal-entendidos...
Novamente, ela, a
moça do norte – “Nortista, não, nortense, é mais chique!”, diz, com um sorriso
nacarado, sorriso de lua cheia, espalhado no rosto –. Morena-tamarindo, de boca
suculenta, lábios vermelhamente embatonzados, olhos falantes e sempre crispados
em olhos quase sempre perplexos. É a moça do norte, de franqueza escrachada e
nocauteante, com a palavra afiada sempre em riste, que não melhorou o
português, mas é com ele que diz o que quer, sem censura ou subterfúgios, mesmo
a quem não deseja ouvi-la; a moça que desejava “tê um fio”, mas que o apelo da
maternidade não foi capaz de liberar o desejo da carne, exigente que era.
Assim, o filho nunca veio. Tampouco, a desilusão.
Um dia, a moça do
norte, já quarentona, resolveu ir à escola. E foi aplaudida por todos. Lá,
aprendeu um pouco do que devia, muito do que não queria e bastante do que não
precisava. Apesar disso, seu mundo, até então, do tamanho de um minúsculo quarto
de empregada, ganhou novas dimensões, cresceu, cresceu, virou às avessas, e
sugou seu mundinho fechado, sem varandas ou quintais, um mundinho cheio de
sombras e muralhas, cheirando a mofo.
Nele, não mais cabia. E, pelas janelas escancaradas à sua frente,
vaticinou novas trilhas e um sol que não conhecia. E caminhou, voando. Daí para
o curso técnico em enfermagem, um pulo, aliás, um salto e tanto.
O estágio pelos
hospitais da vida mostrou-lhe dificuldades não imaginadas. Ai, meu Deus, e o
pobre do português, já por ela tão maltratado? Nossa, ficou pior que jogador de
futebol contundido severamente: manco e troncho. Porém, a moça do norte, cheia
de propriedade, sentia-se, dia a dia, mais letrada e, mais ainda, doutorizada.
Para orgulho da família que, aqui e acolá, reverenciava tal ascensão,
respaldando-lhe os conhecimentos paramédicos, a competência e encantando-se com
suas façanhas cantadas e requentadas a toda plateia atenta:
– Hoje, lá no
Inspital Genial de Goiânia, um véi diabrético chilicou depois de ter um troço.
Ah! vi logo que devia ser enemia, claro! Oceis diabréticos não têm o sangue
raleado? Então...
Nesse “oceis”,
estava eu incluída, naturalmente. Bem, de pronto, corrigi o nome do nosocômio,
trocando “Inspital Genial” por Hospital Geral. A “enemia” e o “diabrético”,
tentei remendar, acho, em vão. E que o padroeiro dos idiomas mutilados não se
distraísse tanto, supliquei. Se possível, até um plantão extra, amém! E que
viesse o próximo estágio...
– Sabe o véi
diabrético? Pois é, vazou!
– Fugiu do
hospital, ou recebeu alta!
– Que o quê, morreu
mesmo! Alta eterna.
Aparvalhei-me com
tamanha singeleza ao falar de algo sério e triste. Ela nem se abalou. E
filosofou convicta:
– Se tamo aqui por
um favor, um empréstimo de Deus, já sabemo que não é pra sempre...
Preferi
silenciar-me ante tão imperativa e lógica postura que, óbvio!, não se conecta à
minha, sempre revestida de muita emoção. Contudo, como as diferenças alimentam
as relações, que assim seja, conformei-me.
Não tardou muito, a
moça do norte, autoconsiderada letrada e doutorizada, admirada pela família,
pelos amigos, vizinhos e adjacentes, após mais um estágio...
– Ih! hoje a
doenceira foi lá no Sanitário... que nome mais esquisito, desconjuro!
– Não seria
Sanatório, criatura? – interferi.
– Parece que é isso
mesmo. Pois é, tinha um doente na UTI, muito grave, e, logo que estatelei os
olhos nele, percebi a morte lá, sentada bem do seu lado. A gente sente quando a
fatídica ronda o doente e, por isso, falei bem claro pro doutor:
– Acho que esse morrebundo
tá precisando é de um médico otorr... um
médico de ouvido.
– De ouvido? O
problema dele é no pulmão.
– Pode até ser, mas
que ele tá surdo, tá: Deus chama, chama, chama e ele não escuta, ora!
Baiana de Urandi e goianiense por adoção, LÊDA
SELMA (de Alencar) é graduada em Letras Vernáculas e pós-graduada em
Linguística. Poetisa, contista, cronista (escreveu para o Diário da Manhã por
21 anos, aos domingos), integra várias antologias nacionais e internacionais. É
verbete em obras como o Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly
Novaes Coelho, São Paulo/SP, e Enciclopédia de Literatura Brasileira, Afrânio
Coutinho/J. Galante de Sousa, São Paulo/SP. Atual vice-presidente da Academia
Goiana de Letras/AGL (ocupa a Cadeira 14), da Associação Nacional de
Escritores/ANE, União Brasileira de Compositores/UBC, União Brasileira de
Escritores/UBE-GO e Associação Goiana de Imprensa/AGI. Publicou 15 livros
(poemas, contos, crônicas). Entre várias premiações, o Troféu Tiokô de poesia,
da UBE/GO, Troféu Goyazes Marieta Telles Machado, de crônicas, da Academia
Goiana de Letras, e o Mérito Cultural, pelo conjunto da obra, da UBE/RJ.
Recebeu os títulos: Cidadã
Goianiense e Cidadã Goiana.
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2 comentários
Mais uma vez aqui. Estou virando fã. Eita leitura mais gostosa, sô!
Ela é genial...
Espontânea... ela brilha qlquer hora... ela acrescenta vida por onde passa... e até por onde não passa... os raios dela contagia... quem lê Leda Selma tem seu horizonte expandido...
Sou fã...
Eternamente fã...
Ela consegue transportar seus leitores para um universo lindo... amplo... cheio de possiblidades... cheio de alegria de bom humor... de criatividade e de Luz...
Parabéns minha poeta favorita...
Eu até acho q a Cora Coralina foi sua mãe em alguma eternidade...
Vc é um luxo Mulher!!!
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