EROTISMO FEMININO, MAIS UMA RECEITA?
Artigo publicado na edição impressa de VEJA
Parece que quanto mais insatisfeitos estamos em nossa intimidade, mais bradamos aos quatro ventos sobre sexualidade, erotismo e coisas semelhantes. Mais receitas aparecem, mais obrigações: nisso como em tantas coisas somos escravos do “ter de”.
A gente tem de ser rico, ser famoso, ter os melhores cartões de crédito, comprar muito, viajar muito, conhecer os resorts, ser bonito, jovem, magro, atlético, conhecer comidas sofisticadas mas estar de dieta, apreciar bons vinhos mas beber só água (sem gás!), ser saudável mas entupir-se de remédios, enfim: viver está mais complicado.
Agora, “temos de” ser heróis da sexualidade.
Jovens, maduros, homens e mulheres, todos caem na onda do erotismo forçado, artificial, receitado, acrobático, difícil e angustiado. Longe do que é natural, se é que temos ainda em nós a escuta e o sentimento do natural, embora sejamos, muitos de nós, naturebas.
O tema erotismo feminino anda cansativo, exagerado, às vezes beirando o ridículo. Mulheres se permitem ou precisam de permissão do feroz e brutalhão patrão masculino, para viver uma sexualidade boa — dependendo do que isso signifique para cada pessoa? Não acredito que na antiga Grécia as nada consideradas mulheres sofressem por cumprir seu dever de concubinas, ou que na era vitoriana todas tivessem apenas de suportar o parceiro na cama.
Os costumes eram outros, sim, bem como preceitos e preconceitos, mas o ser humano foi sempre o mesmo, com a mesma capacidade de amar, de sofrer, de sonhar, de ter prazeres, quem sabe mais intensos por serem ocultos.
Já escrevi que até na Idade Média mulheres, embora raras, davam aulas de teologia ou arte nas grandes universidades, mulheres comandavam seu feudo, quando o marido estava nas cruzadas, mulheres chegaram a fundar, na mesma época, ligas de artesãs para administrar seu trabalho.
Não acredito que no começo do século passado as mulheres que não trabalhavam fora nem ganhavam seu dinheiro não tivessem nenhuma voz dentro de casa. A não ser que por temperamento e medo fossem gueixas submissas de um senhor boçal, frequentemente eram as conselheiras dele, e muitos negócios entre donos de vastas terras ou de pequenas colônias só eram fechados depois de se ouvir a voz da mulher.
Lógico que as coisas mudaram muito, e em grande parte para melhor: não nos casamos mais por imposição paterna, não ficamos mais reclusas em casa, não precisamos ficar de lado com as outras mulheres quando há festa e os homens têm suas conversas ditas interessantes no salão no outro lado.
Não precisamos mais ter todos os filhos que a natureza determinar nem ter uma vida plena só com aliança no dedo. Podemos (em geral precisamos) trabalhar, ter cargos de mando, viajar sozinhas, enfim, podemos ter alguma liberdade — toda a liberdade ninguém tem.
Mas, talvez como quem come mel pela primeira vez se lambuza, andamos desatinadas com o tal erotismo, como se fosse novidade: nunca antes sentimos nada, éramos bonecas de pano? Somos melhores homens e mulheres, mais felizes, mais amorosos, mais unidos, estamos construindo algo melhor juntos sob o império de tais “deveres”?
Ou a obrigação de “ter de” fazer isso e aquilo nos inibe e nos aflige? O que não é espontâneo, amoroso, sutil, um pouco secreto, particular de cada casal, não há de trazer grandes alegrias. Sair correndo a comprar objetos eróticos nos torna mais plenas? Comparando com outras mulheres os novos fetiches, ou brandindo na cara do parceiro tais novidades ou textos, muitas dizem “agora sim, ele vai aprender o que e como fazer para me agradar”, as escravas se tornaram capatazes, como tantas vezes na história?
E, quando as novidades incluem sadomasoquismo, possivelmente nem sempre temos o erótico, mas o perigoso.
Do jeito que andamos, em breve os homens também vão requisitar exóticas e forçadas (ou irregulares) mudanças na língua portuguesa, e teremos frases como “O motoristo do pediatro de minhas filhas agora é estudanto de educação física”.
Fonte:
Lya Luft
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