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E foi-se embora outro homem digno [Eric Nepomuceno]

E foi-se embora outro homem digno


por  Eric Nepomuceno / Carta Maior

Morreu em Buenos Aires um homem digno, um artista inquieto, um ser humano cuja timidez contrastava com a extrema ousadia de sua arte, e que se chamava León Ferrari. O Brasil, e principalmente São Paulo, tem o dever de reverenciar sua memória. Foi justamente na capital paulista que ele buscou refúgio durante a ditadura argentina e fez o que mais sabia: contrariar supostas regras e normas, aceitar todo desafio da criatividade.

A quinta-feira, dia 25 de julho, foi um dia de sol esbranquiçado em Buenos Aires. Foi o dia em que a onda polar que trouxe temperaturas assustadoras nas muitas jornadas anteriores começou a arrefecer. Vendo a vida passar, constatou-se que foi um dia a mais: houve mulheres que ficaram felizes, houve homens que ficaram tristes, e outras mulheres ficaram tristes e outros homens, felizes.

Nada disso, em todo caso, tem a menor importância. É que nesse dia, a quinta-feira 25 de julho de 2013, morreu em Buenos Aires um homem digno, um artista inquieto, um ser humano cuja timidez contrastava com a extrema ousadia de sua arte, e que se chamava León Ferrari.

Tinha 92 anos de idade. Nos vimos pela última vez, rapidamente, em dezembro passado. E, com mais vagar, em outro dezembro, o de 2009. Na última vez, já estava bastante caído. Na anterior, não: nas vésperas de cumprir 90, estava como sempre, em plena forma.

O que mais me impressionou sempre em León foi a inquietação. Era um inquieto permanente, um buscador de perguntas mais que de respostas, um inquisidor da vida. Deixava-se assombrar por tudo, e, assim, assombrava com sua arte. Ou seja: foi, até o fim, um jovem iracundo.

O Brasil, e principalmente São Paulo, tem o dever de reverenciar sua memória. Foi justamente na capital paulista que ele buscou refúgio durante a longa noite de horror da ditadura argentina. Saiu de Buenos Aires no sombrio, tenebroso ano de 1976, e só voltou em 1991. Passou esse tempo todo em São Paulo, fazendo o que sabia fazer: contrariar supostas regras e normas, aceitar todo desafio da criatividade – e na falta de um, inventar muitos–, e se confirmando como um dos mais inquietos, talentosos e provocativos artistas visuais das últimas muitas décadas não apenas da Argentina ou da América Latina, mas em todo o mundo.

Para quem dá importância a esse tipo de coisa, vale recordar que o The New Yokr Times disse que ele foi ‘um dos cinco iconoclastas mais polêmicos das últimas décadas’. Pois foi isso e muito mais.

Foi um homem livre, que se insurgiu contra as formas perversas do poder. Achava que uma das funções da arte era debater a realidade, ajudar a descobrir as possibilidades abrigadas no suposto impossível. Um desafiador cabal, permanente. Seu ativismo na defesa dos direitos humanos e no direito soberano de denunciar foi exercido até o fim.

Há muitos anos, em 1965, criou aquela que talvez tenha sido a mais polêmica de suas obras tão polêmicas. Chamava-se “Civilização Ocidental e Cristã”. Trazia um Cristo crucificado não na cruz, mas num avião de guerra norte-americano. Foi a síntese de sua crítica ácida e irreversível ao poder, ao mito da superioridade dos ocidentais, uma denúncia à Guerra do Vietnã, à prepotência dos impérios desta parte do mundo, dispostos sempre a dominar o Planeta.

Houve mais, muito mais. E vieram os prêmios, os reconhecimentos, o Leão de Ouro da Bienal de Veneza em 2007, e as exposições nos principais museus do mundo, e ele via tudo isso com seu humor de tímido, afiado e certeiro. Certa vez, disse o seguinte: “Continuo me surpreendendo com tudo isso. Nem eu pagaria o que pedem pelas minhas obras nessas galerias do mundo”.

O reconhecimento que ele prezava, o verdadeiro valor do que criou, era outro. Era o afeto e a admiração dos jovens por aquele jovem de muitas décadas de vida, de olhar pícaro atrás dos óculos de lentes grossas, os cabelos grisalhos e lisos de avô rebelde, a serenidade com que se lançava a combates quixotescos e utópicos, que afinal das contas são os que mais valem a pena.

Sua arte comovia, batia de frente, inquietava, despertava almas adormecidas ou anestesiadas. Dizem os críticos e estudiosos que é uma arte conceitual, intransigente, transgressora. Que digam o que queiram.

León Ferrari foi, acima de tudo, um exemplo redondo de compromisso entre ética e estética, de criatividade e ousadia, de livre trânsito entre as mais diversas formas de expressão. Fez gravuras e esculturas, objetos e instalações, desenhos e fotografias. Utilizou gesso e madeira, cerâmica e arames, pincel e lápis. Escreveu desenhando e desenhou escrevendo. Foi um inconformado, um indignado.

Padeceu a pior dor que pode ser reservada a um pai: seu filho Ariel foi sequestrado pela ditadura argentina em 1977 e desapareceu para sempre. Em 2004, quando fez uma grande mostra no Centro Cultural Recoleta, em Buenos Aires, suas imagens baseadas em figuras da Igreja Católica mereceram do então cardeal da cidade, Jorge Bergoglio, que hoje é o Papa Francisco, a classificação de ‘blasfemas’. León respondeu que blasfêmia tinha cometido a Igreja Católica ao apoiar a ditadura sangrenta que, entre outras façanhas, tinha levado seu filho para sempre.

Defendeu a liberdade de escolha, repudiou as imposições todas. Acreditava na função da arte, que é gerar consciência e ajudar a ver o oculto. Não acreditou, jamais, em limite algum para o sonho humano. Para isso, por isso, desafiou dogmas e falsas verdades. Foi um rebelde permanente. Um jovem iracundo, sim.

Por anos e nos um afeto distante nos uniu. Na quinta-feira 25 de julho, depois de dias de frio polar, um sol esbranquiçado aqueceu Buenos Aires. Para mim, não adiantou nada. Senti muito frio na alma quando soube que esse homem livre e digno tinha cometido a indelicadeza de nos deixar para sempre.

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