CAETANO
W. GALINDO
Poesia
é sempre um negócio calado. Meio invisível. Até que, de repente, a cada 400
anos, digamos, surge algo tão inexplicável como a vendagem de "Toda Poesia", de Paulo Leminski -alcançou a
marca, pelas últimas contas de sua editora (Companhia das Letras), dos 50 mil
exemplares.
Por
que isso? E por que justo agora? Será que as pessoas andavam precisando de
poesia? Daquela poesia? E qual é a dela?
A
resposta a essa última pergunta pode passar, e acho que passa, pela singular
mistura de poeta e publicitário que Leminski sempre foi: a mão para a frase-achado,
o talento de ritmar o texto e cravar a pérola, a facilidade para engajar o
leitor numa conversa. Uma espécie de retórica de sedução, de piscadelas,
cutucões e não poucas centelhas; um diálogo que talvez hoje achemos familiar.
Mas
há outro elemento no mistério Leminski, que é ele ter surgido justo deste lugar
de onde escrevo e de onde, aparentemente, surge tão pouco: do meio da geada de
Curitiba. E era só isso? O que é de Curitiba hoje?
Curitiba
hoje abriga toda uma geração desses poetas-acadêmicos-tradutores que Paulo
Henriques Britto afirma que dominam a poesia brasileira (e não esqueçamos a
estável e reconhecida produção de Rodrigo Garcia Lopes, logo aqui em Londrina,
e seu "Estúdio Realidade", lançado em julho pela carioca 7 Letras).
Três
lançamentos recentes vêm mostrar que a poesia feita em Curitiba superou o
evento Leminski, exatamente como deve ser superada uma presença tão definidora:
por compreensão, por absorção e (por que não?), por ser bem outra. Sim, a
poesia aqui está vivinha. E bem das pernas, até. A cidade do polaco zen ainda
tem um monte de cachorros loucos.
IMIGRANTES
Aferrando-nos
ao estereótipo da cidade de imigrantes, comecemos com o alemão do trio. Marcelo
Sandmann, aos quase 50 anos, já vinha de dois livros, um disco ("Canto da
Palavra", em parceria com Benito Rodriguez) e músicas gravadas por vários
outros artistas. Esse tempo de cancha pode bem explicar o fato de Sandmann ser
o mais completo dos três, dotado de uma caixa de ferramentas considerável.
As
formas pelas quais passeia seu "Na Franja dos Dias" [7Letras, 80
págs., R$ 34] vão do poema quase piada ao soneto de versos monossilábicos (isso
mesmo); das séries elaboradas como "Tempus Fugit" ao díptico que é o
brilhante par "Ela Não Sabe", "Ele Não Sabe", em que a voz
madura se confronta com as novas gerações; da prosa ao verso rimado; da letra
de canção à espera de melodia ao pastiche do Renascimento português.
Igualmente
variado é seu repertório cultural, que abarca de Catulo a Frank Zappa, o que
lhe permite encarar de novo a poesia ("Relativa liberdade / de entrar e
sair sem / tropeçar logo de cara / no primeiro verso.") com frescor e
originalidade nunca menos que surpreendentes. Seu vasto leque não deixa de fora
outro monstro local, voz fundadora de uma parcela tão grande do que concebemos
como curitibano: "Nunca pensei / que o nosso amor, // que a minha vida /
fosse terminar / feito conto // de Dalton Trevisan".
Sandmann
pode estar há anos na estrada, pode estar (e quem não está?) refletindo cada
vez mais sobre o tempo e o seu fim, como deixa claro a bela quadra "Quando
eu morrer, puxem a rolha / Que veda o ralo do Universo. / Escoem tudo. E no
reverso, / Pintem um Deus novinho em folha".
Mas
ele ainda mal começou a dizer tudo que precisamos ouvir.
FORASTEIRO
O
forasteiro do grupo é Guilherme Gontijo Flores, brasiliense de 29 anos que
chegou a Curitiba em 2008 e estreia na poesia com "Brasa Enganosa"
[Patuá, 154 págs., R$ 30], depois de já ter publicado traduções de Rilke,
Propércio e, especialmente, a primeira versão em língua portuguesa do monumento
que é "A Anatomia da Melancolia", de Robert Burton (Editora UFPR).
Dos
três, Flores é o mais obcecado por sonoridades e efeitos visuais. É o que mais
deve a Mallarmé, que quase parece digerir sem o intermédio dos concretos,
principais propagadores no país da obra do poeta francês.
Essa
preocupação formal nunca deixa de transparecer: no uso do espaço da página, na
preferência pelas minúsculas, no emprego de ilustrações ("daguerreótipos")
ou na inclusão do belo poema "Labirinto", cuja forma ecoa seu sentido
e que precisou vir encartado no livro, como uma dobradura.
Mas
o apego à forma fala mais alto mesmo é na cadência espinhosa e doce de versos
como o que já abre o livro ("élia lélia críspide"); ou no bonito
"embora nas pregas peças / da vida / um casulo crisálida se faça / em cio
solitário".
Nada
nessa "Brasa" é deixado ao acaso tipográfico (como aliás ilustra um
bem-humorado poema cheio de gralhas, e dedicado ao revisor). E mesmo o jogo
entre títulos e versos, ou entre caixas altas e baixas, gera efeitos
interessantes, como em "NA TRISTEZA DOS OLHOS / calados da noite / rubente
ensaia / despetalar-se / a chaga de um / sorriso".
É
a poesia de um leitor dos clássicos, de um inventor de palavras, de um filho de
Drummond e de Pessoa mas, também, é a arte de quem cita uma banda como Arcade
Fire logo antes de criar um trocadilho em grego.
É
aquele tipo de nó tão ao gosto dessa geração de poetas-acadêmicos, que vê o
mais novo com os mais clássicos dos olhos. A poesia de alguém, em suma, que
lembra que a frase "tudo já foi dito" já foi dita há dois milênios
(Terêncio) e que só assim consegue nos fazer ver, por exemplo, o "locus
amnus de um engarrafamento".
ITALIANO
O
italiano, para voltar ao tópico dos estrangeiros, é o grande Adriano
Scandolara, o mais novo de todos, e provavelmente o mais improvável. Sua
dissertação de mestrado já fez dele, aos 24 anos, um dos maiores tradutores da
poesia de Shelley no Brasil -um volume que, aliás, está à busca de editores.
Sua
"Lira de Lixo" [Patuá, 96 págs., R$ 30] é obra de uma originalidade e
de um impacto impressionantes e de uma versatilidade que mal se pode esperar de
muita gente mais experiente que ele.
Boa
parte da força de sua linguagem advém de ele se dedicar, de novo como o patrono
Trevisan, à Curitiba suja, aquela que a publicidade não mostra e que nos cerca
por todos os lados ("Não se vê daqui, mas sei / que a prostituta da rua /
tem um olho de vidro") ou, pior ainda, quase nos derruba cotidianamente
("ia ao banco, quando / quase / tropeço no cadáver").
É
poesia que nos quer dar apenas "o gozo de escolher / de que lado do arame
farpado ser / fuzilado", e que reconhece, mesmo assim tão cedo, tão antes
do meio do caminho dessa vida, que "depois de um tempo / você aprende a se
foder", mas que faz tudo isso com uma graça -humor, leveza e quem sabe
iluminação- absolutamente invejável.
Essa
presença do meio urbano é a responsável direta por um dos momentos mais felizes
do livro, pois é nas ruas que Scandolara busca o gancho para suas "Glosas
sobre Motes de Pichações", que desdobram desde dizeres mais elevados, como
"O outro é o eco do eu", até o lirismo irretocável do xingamento
"Elaine puta".
Dono
da mesma erudição dos outros dois, de quem foi aluno em mais de um sentido,
Scandolara, no entanto, lida com essa bagagem com humor mais sujo. E também com
mais raiva -ele que, em bom francês ruim, em dado momento se declara "puto
da cara" ("emputé du visage"); ele, afinal, que nos diz
"Entre os restos, o já dito / e o maldito/ tortuosa construo minha / lira
de lixo."
Com
Guilherme Gontijo Flores, Scandolara faz parte de um blog coletivo (outra marca
da produção recente de poesia) chamado Escamandro -os outros dois membros,
Bernardo Lins Brandão e Vinícius Ferreira Barth, ainda estão por estrear em
livro.
Quando
você ouvir falar do frio destas terras (onde até neve tem), lembre-se também de
que Dalton Trevisan nelas está, vivo e forte. Que Cristovão Tezza prepara livro
novo. Que polaca, tudesca, carcamana ou vira-lata, de imigrantes e nativos,
pinheirais (quase não mais) e pichações, Curitiba continua aqui. E que, quem
sabe a cada 400 anos, um de nós ainda bate à porta, uns versos debaixo do
braço, precise você ou não.
CAETANO
W. GALINDO, 39, é
tradutor e professor da UFPR. Verteu para o português, entre outros,
"Ulysses", de James Joyc
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