Dificilmente
a obra literária poderia ser vista a partir da leitura estanque do texto. Além
das equiparações quase inadvertidas capazes de situar a fruição numa ordem de
gosto, relacionando-a a experiências de leituras precedentes, há, ainda, a
comparação entre o que se diz ou disse acerca da obra. Os paratextos, “toda a
série de mensagens que acompanham e ajudam a explicar determinado texto” [1], são também
seus componentes. Mas como comportar-se, o leitor, ao encontrar paratextos
absolutamente incompatíveis com a realidade do texto? Que relações acionar e
qual o produto de tais relações? Questões para as quais talvez haja um número
insuspeito de respostas já que cada leitor empreenderá a sua. Tal variedade não
impede, contudo, que sejam feitas algumas observações.
Não
fosse tão comum encontrar nas publicações de poesia – assim como nos demais
gêneros literários – introduções, apresentações ou comentários completamente
desajustados aos poemas ali encontrados, suspeitaríamos de um equívoco qualquer
de edição. Porém não se trata de equívoco, os paratextos se encarregam de
legitimar, de consagrar autores para o ranking de vendas, o panteão do mercado
editorial. Absurdos e desvarios de análise encontrados de parte a parte. Deve
mesmo haver duas obras em uma: a que se lê e a outra, aquela magnífica,
manifesta somente ao prefaciador.
Nesse
sentido, parece pertinente o título escolhido por Alice Ruiz à sua publicação
de 2008, Dois em um.
Algumas sugestões do especialista, articuladas entre o dito e
o não-dito das abas de capa e inspiradas por uma estonteante imaginação tentam
forjar para o livro uma condição de indispensabilidade. Mas através de seu
formato páreo, ou duplo, Dois em um alcança somente acomodar, sem o menor sinal
de engenhosidade, o velho clichê dos antípodas: luz versus escuridão; dia versus
noite; tudo versus nada.
hoje
sou
uma das coisas
raras
do planeta
capaz
de dar à vida
tudo
que ela tem de luz
flor
que
aberta
traria
da água escura
o
pólen, a fruta
dia
que
tiraria
de
dentro da noite
o
lado oculto da lua
tão
rara
e
como eu
todas
as sementes
que
o vento arranca de tudo
e
atira no nada. [2]
A
receita dos opostos se repete; do corte ao meio, o resto inteiro, o velho e o
novo, o não e o sim. Bem que Alice quis, mas um poema – melhor dizendo, um bom
poema – não se faz de desejo ou veleidade, tampouco resolverá admitir esse
capricho, apenas:
queria
tanto
fazer
um poema hoje
uma
canção que fosse
digna
desse dia
com
suas cores
brilhos
e brisas
queria
tanto
que
esse poema me quisesse
e
me fizesse um mimo
me
desfazendo em risos
queria
tanto esse dia em versos
meu
coração
deste
bem diverso
para
sempre
conservado
em
seu próprio encanto [3]
Embora
não estejam completamente emparelhadas a la rime convencional, as reincidências
sonoras empregadas implodem qualquer possibilidade de encontro com uma
articulação de linguagem merecedora de destaque em razão de suas obviedades, de
seu conformismo com a facilidade. Uma exceção pode ser encontrada no tipo de
rima (toante) que associa as palavras fosse e cores e mimo e risos, situadas
nas duas primeiras partes do texto transcrito acima; entretanto, se nada pode a
andorinha solitária – como sugere o adágio – pouquíssimo será feito por essa
forma de rima menos imediata. Convém salientar que a feitura do poema não está
circunscrita nos domínios da rima ou da métrica, e esses domínios configuram
uma parcela dos recursos linguísticos de que se servirá – ou não – o poeta.
Conforme Octavio Paz, “um soneto não é um poema, mas uma forma literária,
exceto quando esse mecanismo retórico – estrofes, metros e rimas – foi tocado
pela poesia” [4]; dito de outro
modo, a habilidade em formatar versos não garante a existência da poesia, pois
“há máquinas de rimar, mas não de poetizar”. [5]
Dando
continuidade à análise dos aspectos da linguagem em Dois em um, encontramos
várias sequências descritivas; no livro, a apresentação de fenômenos e objetos
compreende as regras sob as quais eles figuram no mundo. Não há surpresa, não
há desajuste, mesmo aquilo que pretende o inusitado não ultrapassa os limites
do previsível. Observamos exemplos dessa postura de acatamento do real no poema
“PROJESOMBRAS” que refere, servindo-se do excesso de declarações, eventuais
contornos adquiridos pela matéria na projeção de suas sombras. Escavação alguma
é executada em relação aos sentidos e às possibilidades transfiguráveis que a
incidência da luz sobre o mundo tende a acarretar; tampouco empréstimo,
exploração ou furto a outros condicionantes além dos tradicionalmente associados
ao fenômeno, quais sejam, dissimulação, similaridade, arremedo; aos sentidos
que as análises corriqueiras intencionam calcificar, forcejo algum foi
direcionado. Ainda que a fuga desse tipo de solução tenha sido planejada, seu
resultado não fundou qualidades suficientes.
PROJESOMBRAS
no
mundo das sombras
os
objetos incham
grávidos
de outras formas
silhuetas
dissimulando similaridades
paródias
e paradoxos
linearidades
em desalinho
aqui
armas
são a alma das louças
ali
projesombras
milimetricamente calculadas
inauguram
com humor
o
outro lado do rigor
o
primeiro plano
passa
a pano de fundo
o
que é o fundo?
o
que é a figura?
o
que é a coisa?
o
que é a sombra?
em
toda arte
as
coisas sonham sombras [6]
No
lugar do sonho das coisas – e de tantas metáforas equivalentes estabelecidas à
suposta inanição dos objetos – talvez fosse preferível a escassez e, em favor
desta, a captura das formas atravessando, de linguagens, os sentidos numa
espécie de apalpadela invasiva ao improviso do mundo. Nem escassez, nem
excesso; Alice Ruiz, mesmo utilizando-se do comedido das descrições, limita-se em
cobrar tributos ao que haja razoável e tantas vezes já avistado. Aqui vale
sublinhar o êxito de Francis Ponge ao recusar composições meramente
contemplativas, saturadas de ineficiência; tais composições, no cerco imposto
aos objetos, jamais lhes ocupam o terreno e satisfazem-se apenas em vigiar seus
caminhos de acesso. Se em seu inventário, Ponge descreve coisas triviais, o faz
concomitantemente à exposição dos “mecanismos de linguagem que sustentam as noções
que temos desses objetos, de modo que cada texto seu se converte numa fábula
anfibológica”. [7] Com isso, não
detém seus significados, motivos, pretextos entre as fronteiras justificáveis
do sonho, do engano, da semelhança ou da aproximação vaga; para ele, “o mundo
não pode exprimir-se, construir-se, a não ser que o homem renuncie a seu
orgulho e lhe dê rindo a palavra”.[8]
Em
Dois em um não há qualquer vestígio dessas lições, ao contrário, sua linguagem
se estabelece no campo desgastado da repetição, acrescentando peso e volume à
“grande bobagem universal”. [9] O encontro da
sugestão de aspectos inesperados no texto, graças a artifícios como inversões,
isolamentos ou alterações de grafismos de uma palavra, não deve ser confundido
com o trocadilho, a sacada sem esforço das ideias pré-cozidas contidas em
poemas como: “verão / meus olhos veem / não verão”, [10]
ou, “apaixonada / apaixotudo / apaixoquase” [11]
ou, ainda, “seduzindo / tarduzindo / noites indo”. [12]
Soluções caídas à beira do mau gosto.
Se,
por um lado, o título da obra sugere multiplicidade, pluralismo, por outro,
encerra uniformidade. Alice Ruiz opta pela monotonia singular, não tateia
irregularidades, não expande nenhuma conquista levada a efeito pela poesia até
as décadas finais do século 20; somente uma leve descontração e o humor fácil
se encarregam de ornamentar essa estridente e superpopulosa sala de estar em
que se transformou a literatura contemporânea, ambiente no qual todos – se
devidamente mantida a elegância com os demais convivas – são bem-vindos e onde
a tradição, reduzida à enunciação do nome do poeta da vez, embeleza inúteis
cartões de visita alçados a desconcertantes abas de capa.
Tanta
alaúza se entrelaça com uma suposta popularidade atribuída à autora – talvez em
decorrência de seu trânsito em ambientes da música popular – e que chega mesmo
a ser destacada como justificativa à relevância da publicação aqui em apreço. Aparentemente ,
a soma do público tem bastado para nutrir a satisfação em ver uns zeros
incorporados aos índices de leitores-algarismos, não se cuida, no entanto, de
verificar se foram amontoados à direita ou à esquerda; um grande público – vá
lá, pode ser até que haja –, mas pouquíssima reflexão e quase nenhuma exigência
estética.
Sobre
o público, convém que se lance também algumas suspeitas. Há uma significativa
parcela de leitores levianamente dispostos a, tanto mais negligenciar
avaliações qualitativas em relação à obra, quanto maior for sua afinidade e
solidariedade à biografia do autor. Há também os que se comovem ao consumo em
face de alguma excentricidade do artista posta em evidência. Em ambos
os casos percebe-se o esquecimento – ou simulação do esquecimento – da condição
de disjunção entre as experiências vivenciadas pelo indivíduo que compõe a obra
e o resultado de seu trabalho. Leitores assim, contanto que eles disponham de
algumas informações sobre a vida do autor, e isso é bastante comum de ocorrer
em se tratando de nomes mais populares, facilmente encobrirão o poema com dados
biográficos em passagens como as que seguem:
dando
à luz uma estrela da manhã
toda
luz da manhã
passou
por uma estrela
amamentar
a estrela
enquanto
a via-láctea
tiver
leite [13]
11/7
pressupondo
que existe
memória
na morte
e
dentro dela um calendário
feliz
aniversário [14]
11/7
a
data de hoje
a
data da tua vinda
fosse
outro ano
seria
vida [15]
A
disposição em encontrar, na ficção, os vestígios da realidade – e vai aqui uma
opinião desprovida de outros métodos de análise, além da observação mais ou
menos atenta – parece ser bastante corriqueira e talvez até tenha suas razões,
embora não colabore em nada para a qualidade estética das produções. É
importante salientar que a obra de arte não materializa o “efeito de uma causa”
[16]
e, portanto, não se desvenda na medida em que “as causas, situadas na
existência do homem escritor” [17]
sejam conhecidas. Afinal, nada mais contrário à inventividade artística do que
“transformar em obra os dados originais” [18],
ou, satisfazer-se com o encontro desses dados explicitamente enxertados na
obra, nas duas situações, negligencia-se a prerrogativa de que a obra de arte
inicia exatamente no ponto onde desfigura seu modelo, onde deforma seu lugar de
partida.
[1] ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da
ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p.: 150
[2] RUIZ S., Alice. Dois em um. São Paulo :
Iluminuras, 2008. p.: 31
[3] Id. Ibid. p.: 37
[4] PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1982. p.: 16
[5] Id. Ibid. p.: 16
[6] RUIZ S., Alice. op. cit., p.: 40
[7] MÜLLER, Adalberto. In: PONGE, Francis. Mimosa. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 2003. p.: 10
[8] PETERSON, Michel. A manobra do texto. In: PONGE,
Francis. A Mesa. São Paulo: Iluminuras, 2002. p.: 17
[9] MOISÉS, Leyla Perrone. Roland Barthes: o saber com
sabor. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.: 90
[10] RUIZ S., Alice. op. cit., p.: 140
[11] Id. Ibid. p.: 72
[12] Id. Ibid. p.: 76
[13] Id. Ibid. p.:129
[14] Id. Ibid. p.: 56
[15] Id. Ibid. p.: 71
[16] MOISÉS, Leyla Perrone. A falência da crítica – Um caso limite:
Lautréamont. São Paulo: Perspectiva, 1973. p.: 51
[17] Id. Ibid. p.: 51
[18] Id. Ibid. p.: 77
Fonte:
Denise Freitas-Escritora e professora de história;
é autora de Misturando Memórias (2007), Mares inversos (2010); está entre os
autores que compõem a Antologia poética: Moradas de Orfeu (Letras
Contemporâneas, 2011); possui publicações em diversas revistas e sites
literários, dentre os quais, Revista Sibila, Germina Literatura, Musa Rara, Artistas
Gaúchos, Revista Modo de Usar.
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