Uni,
duni, te...
Disseram-lhe, à exaustão,
que mulher tem que ser independente. Que ela devia fazer como sua mãe que era
chefe de família, bom salário, sempre viajando, estudando, se divertindo,
mandando no próprio nariz. Que podia seguir o exemplo da tia, física de renome
internacional, premiada, das que dão palestra em dólar e entrevista no jornal,
solteira por opção, apartamento chique em bairro rico da cidade. Ou ainda da outra tia, viúva, que administrava
sozinha as fazendas da família. Sem filhos, as duas. Sem hora, sem freios, sem
satisfações a dar.
Disseram-lhe mais — e
repetidamente: que mulher não tem medo da vida. Que seu corpo só pertencia a
ela mesma. Que ela não precisava de homem para ser feliz, nem para pagar as
contas nem para se sentir segura. Para o sexo, sim. E que homem sabia menos,
aguentava menos, valia nada.
Repetiram tanto que ela
teve medo. Medo daquelas vontades que sentia no quarto, no escondido das
madrugadas sem sono. De querer beijos prolongados e arrepios pelo corpo. De
sonhar com o homem alto, moreno, encantador que falaria com ela na exposição de
quadros, escolhendo-a entre todas as outras. O homem com quem começaria a se
encontrar com frequência e com o qual faria amor num quarto de motel impessoal,
depois de um jantar francês regado a vinho bom. Seguiriam se vendo, teriam
algumas brigas bobas, por ciúme, e se casariam no verão, em cerimônia para
muita gente. Filhos bem paridos, casa confortável, viagem em família todos os anos.
Muitos jantares preparados pela empregada cara, no fogão caro equipado com
grill e timer. Mesas com velas, banheiras com pétalas de rosa, camas com
lençóis de cetim — que só depois ela descobriria que escorregavam. Presentes
caros, dois, três por ano, para celebrar o Natal, o aniversário e alguma outra
coisa. Ela recebendo joias lindas, viagens inesquecíveis. Ele ganhando ternos,
pastas de couro, sapatos importados, festas inesquecíveis. Tudo pago com o
dinheiro dele. Porque ela não trabalharia mais, assim que se casasse. Seria o
que sempre quisera ser: dona de casa. Com orgulho de si mesma; com pena de quem
não podia ser. E cuidaria dos empregados, dos professores particulares dos
filhos, da decoração, do cabelo, das unhas, da sobrancelha, das recepções en
petit comité para o pessoal do trabalho, da vida alheia.
Fariam bodas — de todas as
coisas. Conversariam. Cada vez menos. Porque ele ia querer falar de política,
de economia. Ela teria sempre como tema os filhos, as viagens e os divórcios
das amigas. As amantes, ele as teria sem fazer alarde. Muitas. Mais gostosas,
mais fogosas, mais objetos do que ela. Ela, claro, nunca saberia de nada.
Sabendo ou não. Um drinque à tarde, com as amigas. Outro mais à noite, para
esperar o marido. E vários quando ele esquecesse os teatros, os cinemas, as
exposições, a cor dos olhos dela. Tudo cessaria quando estivessem na cama. Com
o hálito dela cheirando a pasta de dentes, café, canela, qualquer coisa para
afastar do nariz dele o bafo entranhado de álcool. Sim, tudo se resolveria na
cama, onde ela o deixaria fazer o que quisesse, boneca de pano imitando
orgasmos de mulher liberada. Esquecida de como ainda queria ouvir sussurros no
ouvido repetindo “te amo”.
Quando o cansaço chegasse,
já seria tempo de pôr do sol. E ela corromperia as próprias dúvidas
confrontando-as e lhes perguntando o que poderia fazer se e caso partisse.
Retórica. Triste retórica. Ela que só havia desejado ser a mulher de alguém, a
mãe de alguém, ter uma casa bonita. Que não quisera ser a cópia da mãe, da tia,
da outra tia.
Amada. Era o que ela
quisera ser. Amar-se. Devia ter escolhido isso.
*Imagem
https://mail.google.com/mail/u/0/images/cleardot.gif
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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Um comentário
Obrigada, Daufen Bach! Um grande abraço!
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