Quebra-quebra
Quebrar. Do verbo despedaçar, destruir, fragmentar.
Aurélio, Houaiss, obrigada. Quebrar. Do verbo se espatifar em erros, se
estilhaçar em dores, se destroçar em consequências.
Quebrar as unhas. De tanto cravá-las na pele para
convocar a vida que está lá, subcutânea. Quebrar o mito da boa menina. E também
o da menina boa. Essas falácias de anjo e demônio, do bem e do mal, do yin e do
yang que a gente consome no leite materno e se vicia nelas para o resto da
vida. Falácia... Adoro essa palavra. Sempre quis usar em algum texto. Pronto,
está aí. E nem me importo de ser chamada de velha pelos
vigilantes-do-contemporâneo de plantão.
Quebrar a tradição de família que sussurra nos ouvidos
das crianças que chorar só pode no banheiro e na fronha. E depois? Quando
crescem e começam a engolir aquela água salgada toda, qual é o conselho, hein,
tias, mães, avós? Tem gente de família com um mar de choro por dentro. Homens,
mulheres. Cultivando tsunamis que se alternam com águas paradas. Paradas
demais. Eles nunca aprenderam a explodir em pororocas.
Quebrar a perna. Que no teatro dá sorte, mas que na
vida é só tropeço. E muletas. Drama! E ao fim de cada ato, limpo no pano de
prato as mãos sujas do sangue das canções... Betânia para quebrar o gelo. Ou
não quebrar. E usar os cubos no copo de whisky (escreve uísque você, que o meu
é scotch). E tomar vários, intensos e desastrosos porres, deixando no
congelador dois ou três cubinhos para a compressa de pano que vai aliviar mais
tarde as têmporas latejantes da ressaca.
Quebrar o pau com o mundo inteiro, quando a vida
estiver enchendo o saco. Sem o menor remorso. Porque quando a vida incomoda, a
gente vira uma coisa meio Black Bloc, que quebra tudo e de cara tampada. É só
não esperar que alguém entenda, que se solidarize. Porque ninguém leva em conta
se antes de apanhar a gente era legal. Se antes a gente quebrava lanças e
promessas pelos amigos, pelos filhos, pelos amores.
Quebrar o sigilo de coisas passadas, camufladas, mal
contadas. E em troca de sexo apressado, de emprego vagabundo, de promoção
pequena, de elogio barato, de popularidade de boteco quebrar a confiança de
quem entregou para a gente os seus segredos mais caros. E entregou por afeto,
por descuido, por bebedeira.
Quebrar o jejum. Abocanhar sem vergonha o prato cheio.
Sexo com fios de ovos. Amor em nuvens de algodão doce. Paixão ao leite
condensado. Chope com os amigos nos dias de verdade. Champanha com os amantes
nos dias de brincadeira.
Quebrar a rotina. Quebrar, quebrar, quebrar. Tudo.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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