Sua fachada está vazando
Meu vizinho pintou sua
fachada de azul calcinha.
Pra quem não sabe, azul
calcinha é um azul horrível. Azul de calcinha barata, que se compra de baciada.
É um azul que não existe e, por isso mesmo, quando alguém resolve fazê-lo
existir, é bom que o faça com parcimônia porque pode ser difícil de aguentar.
Pois meu vizinho quis que
sua fachada existisse dentro da minha sala. Seu azul impossível ocupa agora boa
parte da minha vidraça.
Sua atitude me fez voltar
ao quintal da minha infância, que eu vi ser sombreado por um gigante cinza que
foi surgindo atrás do abacateiro.
Eu era menina, mas me
lembro muito bem de pensar no injusto direito que aquele homem, o construtor do
prédio, teria sobre o nosso sol.
Será que existe alguma lei
que proteja nosso lugar ao sol? E nosso campo de visão?
Sento para comer sempre na
mesma cadeira e, levantando a cabeça do prato, dou agora de cara com o azul
calcinha. Posso tocar a campainha e dizer "sua cor está vazando na minha
sala" ou é melhor engoli-la a cada garfada?
Quem protege o nosso gosto
das fachadas pintadas ao bel prazer? Sempre fui muito ligada no visual. Sou do
tipo que levanta da cadeira pra ajeitar um objeto na estante. Fiz comunicação
visual na faculdade e me pego em reformas visuais até olhando pelas janelas dos
táxis.
Me desculpem a heresia,
mas tenho sérias restrições ao projeto Cidade Limpa. Confesso que preferia ver
a Gisele Bündchen a tapumes, canos, retalhos de reboco e novelos elétricos. Não
temos fachadas preparadas pra tanta "limpeza".
O descaso com nosso campo
visual vem de muitos anos e de pérolas arquitetônicas jogadas ao chão. Se a
Gisele estivesse escondendo uma delas, até tudo bem, mas diante de tais
corredores cinzentos e mal acabados, morro de saudades do "Times
Square" da Consolação.
Engulo o azul calcinha,
pensando na linda luminária que minha sala ganha quando acendem a torre da
Doutor Arnaldo.
Um raro presente do
descaso.
Denise Fraga é atriz e
autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato
Falado" (ed. Globo). Escreve a cada duas semanas na versão impressa do
caderno sãopaulo
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