A primeira vez (um conto de amor)
Aquela foi a primeira vez que o Euclides e a Eleonora
foram a um motel. Primeira! Comemoravam o vigésimo aniversário de casamento e
no decorrer da semana o Euclides recebera da esposa inúmeros recados, tendo os
filhos como mensageiros, que não deixavam nenhuma dúvida: se mais uma vez a
presenteasse com um eletrodoméstico para a cozinha, independente da utilidade e
do tamanho, ela o faria engolir o presente com garantia estendida e tudo! E a
Eleonora não era de fazer promessas vãs... mas não era preciso tantos alertas,
até ele sabia que a data merecia algo especial. Afinal, eram praticamente
sobreviventes... "Vinte anos de casado não se faz toda hora!", disse
para si mesmo o Euclides, diante do espelho, ao fazer a barba e se dar conta de
que o grande dia se aproximava e ainda não havia preparado surpresa alguma!
Assim, depois de muitas horas de consultoria prestada pelos amigos durante o
dominó no boteco, e após descartarem suas ideias iniciais de levá-la na
pizzaria do bairro ou, pior ainda, num estádio para assistir a um clássico
estadual, o Euclides foi finalmente convencido de que se queria mesmo
impressioná-la, precisava reascender a chama dos primeiros dias de namoro. Era
hora de acordar o lobo que um dia já fora, mas que se encontrava nocauteado por
anos de acomodação, resgatando, por sua vez, a chapeuzinho vermelho que talvez
ainda habitasse a alma da Eleonora.
Deste modo, foi com uma caligrafia tremida de
expectativa que de manhã, antes de sair para o trabalho, deixou um recado sobre
a cômoda avisando a esposa para estar bem linda à sua espera quando ele
chegasse no fim do dia, pois iriam sair só os dois: iriam a um... MOTEL!
A Eleonora leu e releu dúzias de vezes aquele pedaço de
papel, tamanha ansiedade que lhe provocaram aquelas palavras... Chegou a especular
se ele não teria se enganado ou se ela mesma não teria entendido errado!
Impossível... a palavra "motel" estava inclusive em letras
maiúsculas! Nervosa, apesar do coração acelerado de satisfação, chegou a
desejar que de fato aquilo não fosse verdade... Escolhendo a roupa, tamanha
ansiedade, chegou a pensar em ligar para o Euclides dizendo que preferia uma
batedeira de três velocidades. "Motel? Não estaria sonhando? O Euclides? O
seu marido que ficava escandalizado até com propaganda de sabonete?! Será mesmo
verdade?" Mas não só era verdade, como – e isso ela só ficou sabendo
quando já se dirigiam para o... o... "aquele" lugar... – ele havia
reservado nada menos que a melhor suíte disponível! "Um desbunde! Tem até
discoteca", anunciou o Euclides referindo-se a uma pista de dança com
luzes coloridas no chão que lhe prometeram por telefone, quando da reserva.
"Uau! Discoteca?!"impressionou-se a Eleonora, ainda mais nervosa com
a notícia. "Será que essas luzes não vão ressaltar as minhas
estrias?", pensou preocupada.
E assim foram os dois no carro como se estivessem
próximos de cometer um pequeno delito: apesar dos corações gritando de
felicidade, seguiam no mais absoluto silêncio de timidez. A última
"aventura" que se lembram terem feito foi num reveion, quando tinham
cinco anos de casado e decidiram comemorar a passagem do ano na casa de praia,
sem as crianças, que foram despachadas para os avôs. A Eleonora jura que
colocaram alguma coisa no seu champanhe... O Euclides, por sua vez, se desculpa
afirmando que misturou uísque com cerveja. O fato é que rolavam, nus, na areia
da praia, quando ouviram a contagem regressiva e aí... Bom, foi tudo muito
rápido... Quando viram, já era tarde demais: por quase cinco minutos os fogos
iluminaram por completo toda a praia! Que situação! Educados, no dia seguinte
os vizinhos preferiram não comentar... Mas até hoje as crianças perguntam por
que eles venderam repentinamente a casa de praia. Bom, mas isso faz quinze
anos, muita coisa mudou e eles já não são mais os mesmos...
* * *
Apesar do endereço cuidadosamente anotado e depois
fixado com cuspe em cima do console, ambos deram inúmeras voltas no quarteirão
antes de finalmente entrarem no motel.
– Você tá perdido, Euclides?
– Não... só estou esperando o caminho ficar livre pra
ninguém ver a gente entrando, Eleonora... Pronto! Agora... Abaixa, abaixa! –
avisou de repente, antes de dar uma guinada brusca e lançar o carro para dentro
daquele "estabelecimento" de muros altos e letras de neon na porta.
Para a voz feminina que surgiu por detrás de uma
minúscula janela, o Euclides pediu, fingindo tranquilidade, por uma reserva
feita em nome de Luizão.
– Luizão, Euclides? – sem entender, sussurrou a esposa,
que permanecia escondida, encolhida no chão do banco de passageiros para não
ser reconhecida.
– Pssss... quieta, amor, queria que eu desse meu nome
verdadeiro?
– Ãaaaa, entendi – piscando de volta, orgulhosa da
esperteza do marido.
– Quarto 86 – anunciou a voz anônima, cúmplice do que o
Euclides e a Eleonora estavam próximos de fazer...
– Não é o máximo? – pergunta o orgulhoso marido,
esfregando as mãos, enquanto o portão se abria lentamente.
– Urrum – concordou a sua Eleonora, sentindo-se uma
presa enjaulada, pronta a ser devorada.
O Euclides agora dirigia a dez por hora numa rua
estreita margeada de garagens, ansioso como uma criança chegando à Disney –
Isso aqui é um labirinto! – queixou-se – Vejamos... 35, 40, 58... Aquela está
ocupada... quem será? Cutucou-a curioso... 60, 62... 86! Aqui, 86! Chegamos...
– anunciou com um brilho no olhar.
– Aí meu Deus! – foi a resposta que a Eleonora deixou
escapar
Após estacionarem e constatarem, impressionados, que a
porta da garagem se fechava sozinha, deixando-os, como dois contraventores, na
total privacidade, entraram ambos no quarto, um atrás do outro, pé ante pé, num
andar cuidadoso como se pisassem em telhas.
– O que você disse para as crianças? – sussurrou o
Euclides, apalpando a parede à procura do interruptor.
– Que iríamos ao cinema – responde a Eleonora do outro
lado do quarto escuro, também tentando ascender a luz, mas no fundo preferindo
aquele breu.
– Por que mentiu? Até parece que estamos fazendo alguma
coisa errada... – emendou o Euclides.
– Quer que eu diga às crianças que viemos aqui? –
retruca a Eleonora.
– Não dava pra eles deixarem a luz acessa? – queixa-se
o Euclides, antes de bater com a canela numa mesa de cabeceira – filho da
%$#@#$!
– Calma querido, acho que encontrei o controle-remoto
da TV – informa a Eleonora – tateando a mesinha de cabeceira ao lado da cama.
– Isso, pelo menos assim ilumina o quarto... Liga, meu
bem!
Trrrrrrrrrrrrrrrrrr
– Ai, meu Deus... Liguei... Tá vibrando.
Trrrrrrrrrrrrrrrrrr
– Ã? Ops... Larga isso, Eleonora. Não é
controle-remoto!
– Tá vibraaaaaaaaando! – assustada.
– Laaaarga! – finalmente ascendendo a luz e encarando a esposa de olhos arregalados,
impressionada com o objeto que tinha em suas mãos!
* * *
Passado o tropeço inicial, estavam ambos feito
pintinhos no lixo: reconhecendo o terreno e vasculhando tudo, felizes de dar
gosto!
– Espera aqui, Euclides, que eu vou trocar de roupa! –
anunciou a Eleonora, tendo a tiracolo uma sacolinha que trouxe de casa contendo
Deus sabe o que... – Não foge, ein? Eu já volto!
– Trocar de roupa? Ihhh... Isso vai demorar! –
queixou-se desconfiado, afinal, era escolado em acompanhar a Eleonora nas
experimentações de roupa no shopping – Meu bem, ao invés de colocar outra
roupa, tira essa... Quer dizer... Tem certeza que precisa mesmo de outra roupa?
– Unrum... – respondeu com voz languida – Por que você
não providencia uma musiquinha enquanto isso?
– Uma musiquinha... Vejamos... Vejamos... – repetiu o
Euclides, acabrunhado, fuçando os inúmeros botões no painel ao lado da cama,
enquanto a Eleonora permanecia trancada no banheiro.
Inquieto como uma barata de barriga para cima, primeiro
o Euclides tirou parte da roupa, depois, verificou no painel ao lado da cama
todas as possibilidades de iluminação possíveis, buscando a ideal: Pouca luz,
muita luz, luz vermelha...
– Foi você que apagou a luz do banheiro, Euclides?
– Ops... desculpa! Foi mal...
Em seguida, ligou e desligou o ar-condicionado, depois
o som... "Qual estação? Vejamos... pagode não... Fábio Júnior, não... Essa
também não... Não se faz mais música decente?!" Gritou pra ele mesmo.
Depois, vasculhou o frigobar... Pensou em abrir um vinho, mas após verificar os
preços no menu, preferiu um keep koller. Deitou novamente na cama... A TV!
Uhm... a TV... Ops! – Dando de cara com um filme em inglês, sem legenda, mas
que imediatamente compreendeu o roteiro... – Olhou-se no espelho do teto
comparando-se ao ator... Encolheu a barriga. Olhou a ferramenta de trabalho...
Primeiro dele, depois do ator! Desligou a TV. "Certamente isso é efeito
especial!", desdenhou.
– Já to indo, querido... Só mais um minuto... –
anunciou a Eleonora.
– Não tem pressa, meu amor! – devolve o Euclides,
ajeitando o cabelo em frente ao espelho.
– Tchan... Tchan! – aparecendo diante dele,
flagrantemente nervosa como uma atriz na noite de estreia.
O Euclides estava mudo, procurando as palavras.
– Euclides?
Euclides permaneceu em silêncio com os olhos
arregalados e boca aberta... Uma palavra errada e tudo perdido.
– EU-CLI-DES!!!
– Ãn... Uhm... Ah, sim... Meeeeu Deeeeeus, como você
está linda com essa roupa! Toda de preto... Lembra uma artista de cinema...
– É? – desconfiada. – Qual?
– Uhm... Uma famosa... – pensando... pensando...
– Diz: Quem?
– Quem? – devolveu para ganhar tempo.
– É, Euclides. Que artista de cinema?
– A... A... A mulher-gato! Isso... – balançando a
cabeça afirmativamente – Essa armadura preta... Essas presilhas na perna...
– É um corselet! E isso são cintas-liga...
– A mulher-gato! Sem tirar nem por! Lembra do filme do
Batman? A mulher-gato usava uma roupa assim...
– Você não gostou? – escondendo-se atrás da porta do
banheiro.
Pânico... Precisa agir rápido...
– Tá brincando? – pulando em sua direção e puxando-a
para si – Era meu seriado preferido! Assistia o Batman só para ver a
mulher-gato... Não era em todo episódio que ela aparecia, mas eu: a-do-ra-va!
– Uhm... Jura que gostou?
– Palavra de escoteiro! Vem cá minha gatinha...
– MIauuuuu! Você que tá um gato, querido! – enlaçando o
seu pescoço – Arg... Que é isso no seu cabelo, Euclides? Tá gorduroso!
– Ah, passei um gel que encontrei aqui do lado da cama!
Eles pensam em tudo, né, amore?
– Unrrum... – respondeu a Eleonora, que agora já não
falava, só ronronava.
* * *
Que aniversário de casamento eles tiveram... Um
sucesso! Curtiram como há muito não faziam... Também, pudera, em casa sempre
tinha algo para atrapalhar: as contas penduradas na geladeira, as crianças batendo
na porta do quarto... Dessa vez não! Aproveitaram aquelas três horas de
intimidade como se fossem as últimas... Colchão d'água, sauna e até piscina (A
Eleonora, desconfiada, nadou de boca fechada, mas adorou!). Até a pista de
dança usaram... Tudo tão maravilhoso que inclusive já ficou combinado de no
aniversário de vinte e cinco anos de casamento retornarem lá... Aliás, estava
tão bom que até acharam que um período de três horas foi pouco para tanta coisa
que tinha na suíte! Quem sabe da próxima vez até sobre tempo para fazerem
amor!!!
* * * * *
Jean Marcel-
Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois
adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas,
romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
4 comentários
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk... Excelente, Jean, excelente. Me matei de rir. Show de crônica!
Muito bom parabéns Jean excelente!!!
HAHAHAHAHA Adorei a narrativa. Mantem presa a atenção do leitor! E o final é, no minimo, inesperado. Fiquei desapontada, não com o autor, mas com os personagens! HAHAHA PARABÉNS!
HAHAHAHAH Adorei a narração. Mantem presa a atenção do leitor. O final inesperado me deixou desapontada, não com o autor, mas com os personagens... hahaha
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