A tecnologia x nosso jeito de contar histórias
Contar histórias (ou estórias, para quem prefere a
clara distinção) é tão inseparável do ser humano como as necessidades
biológicas mais básicas, e a forma como saciamos essa necessidade mudou com o
tempo, como também mudaram os hábitos (ou seria melhor dizer possibilidades?
alimentares, a forma de vestir-se e abrigar-se e o modo como nos agrupamos com
outros indivíduos em famílias, clubes, sociedades, tribos. Diante de todas as
modificações que já assistimos – desde a migração da pura oralidade ao surgimento
dos romances viabilizados pela invenção de Gutenberg, passando pelo
encurtamento progressivo das narrativas em mini e microcontos, não devem ser
poucos os que se perguntam sobre as modificações que ainda estão por vir. Que
futuro terão as estórias que contamos / ouvimos / lemos e nas quais queremos
continuar mergulhando? Qual o futuro da narrativa nesses tempos tão dispersivos
quanto hyper (ou pseudo) conectados?
A tecnologia interfere na forma como a ficção é
entregue ao público – seja nos cinemas, nos games (sim, já capitulei e admito
que há muitos games que funcionam de alguma forma como narrativas, onde o
jogador é parte ativa nos rumos do enredo), em web series, séries de TV e
também nas narrativas escritas - em papel ou em edições digitais.
Quando os e-books começaram a fazer parte do cotidiano
de alguns poucos brasleiros, muito se discutiu sobre a relevância e mesmo sobre
a suposta necessidade de que e-books incorporassem novos recursos (os tais
enhanced e-books) que ampliassem a experiência do leitor. Nunca aderi a essa
ideia pela simples razão de que o atributo que mais me atrai na literatura é
justamente a habilidade do autor com a matéria prima palavra – assim como dos
artistas plásticos com seus insumos para criação (tintas, metal, rochas). Entretanto,
devo admitir que tenho visto aplicativos interessantíssimos que parecem ser
ótimo complemento de livros didáditos (cito como exemplo especialmente a área
médica). O caso é que, goste eu ou não, a tecnologia tem se insinuado nas
entrelinhas – quase literalmente – também da literatura.
Ainda sou um bocado reticente com qualquer coisa em
literatura que não seja ela mesma, mas a crescente dispersão e o hábito um
tanto caótico de leituras curtas na tela do computador o smartphpne,
interrompidas, com atenção dividida entre muitas outras tarefas ou simples
distrações é um fato. Assim como Gutemberg ajudou a moldar todo um hábito de
leitura em função das possibilidades de multiplicação de textos, os atuais
recursos tecnológicos também estão determinando muito do que é feito em termos
ficção, especialmente quando se pensa prioritariamente em entretenimento.
Aliás, talvez essa palavra seja crucial para estabelecermos a possível
discussão aqui, combinemos desde já que não estamos aqui falando de textos literários
(ou pretensamente literários), mas de ficção feita para divertir, com público
alvo variável e cada vez mais segmentado (embora eu ache a leitura de Proust um
entretenimento incomparável, sei que muitos só conseguem colocar nessa
categoria temas fantásticos ou qualquer outro mesclado a muitos efeitos
especiais).
MOOC´s e outras possibilidades
E com foco nessas mudanças todas que vem surgido e
ainda se apresentarão, um curso online livre e de grande abrangência, o MOOC
The Future of Storytelling apresentou, ao longo de oito semanas, video aulas,
dicas de leitura e muitos videos de referência sobre séries de TV, web series e
games, entrevistas com autores e gente que tem estudado o tema storytelling.
Além de uma introdução muito básica sobre a estrutura das narrativas clássicas
de romances e cinema e suas derivações em outros formatos, houve discussões
específicas sobre web séries, a narrativa em games, os ames baseados em
localização geográfica, que vão desenvolvendo a narrativa conforme o deslocamento
do leitor-jogador, realidade aumentada e as narrativas transmedia. A cada
semana eram propostas tarefas aos participantes – as “crative tasks of the
week”, algumas para realizar individualmente e outras que propunham a interação
entre os participantes.
Achei a ideia e a dinâmica do MOOC (Massive online
open course) um uso interessantíssimo e muito rico da web, e só isso já me
abriu portas interessantes (descobri dezenas de portais que oferecem esse tipo
de curso gratuito, a qualidade e organização, bem como a possibilidade de
interação entre os participantes varia, mas no geral é uma fonte interessante
de busca de conhecimento). Mas focando no tema abordado, vale dizer que aprendi
bastante coisa, tomei contato com criações e iniciativas que desconhecia e
despertaram minha curiosidade. Não que se tratesse de teorias complexas ou
conteúdos extremamente novos, mas o grupo que idealizou o curso costurou
muito bem as tendências, convergências e
dúvidas que envolvem o desafio de contar histórias no mundo atual e as
perguntas pertinentes para quem se interesse pelos rumos do assunto no futuro
próximo.
Criações coletivas x o futuro da narrativa
Um dos resultados concretos da participação no The
Future of Storytelling foi a produção de um texto coletivo. Tudo surgiu com a
tarefa do curso que propunha a criação de uma personagem que pudesse interagir
nas redes sociais com outras personagens criadas pelos colegas. Dentro do
grupo lusófono que se formou no facebook
reunimos quatro membros – 3 brasileiros e um português - e criamos uma pequena
novela sobre o cotidiano de pessoas envolvidas com uma rede multinacional de
livrarias. O que produzimos não tem qualquer pretensão literária, cabe
esclarecer desde já; foi uma brincadeira (que procuramos levar tão a sério como
nossos tempos, em pleno dezembro, permitiram). Uma experimentação levada a cabo
com algum planejamento e todos os percalços do “modo web” de interação (leitura
apressada, sem concentração as vezes até de nossa parte – as “reuniões de
pauta” do grupo se deram em um grupo fechado no facebook e houve dias em que
nos atrapalhamos com o cronograma de postagem-autor por conta de recados mal
lidos #prontofalei).
Valeu a experiência (cujo produto, aliás, será
disponibilizado em e-book), inclusive como combustível para refletir sobre essa
questão da autoria x criação coletiva que a web suscita. Mas não cheguei a
nenhuma conclusão a respeito, continuo sendo um bocado devota do conceito de
autor-artista, seja por tolice umbiguista ou por puro encantamento com certas
criações que já me cairam em mãos e que não consigo imaginar melhores caso
tivessem sido produto de criações coletivas, mas já não olho com o mesmo desdém
para esse tipo de iniciativa. Acho que ando adepta do benefício da dúvida.
Parece-me, porém, que a criação coletiva com o intuito
de envolver a “audiência” poderá se tornar cada vez mais frequente, já que a
agitação inerente aos nossos tempos tende a supervalorizar o papel da
participação do leitor-espectador na condução da trama. E como aumentar a audiência
está geralmente atrelado a sucesso comercial (seja pela venda do conteúdo ou
pelos ganhos com publicidade atrelados a esse conteúdo), essa aposta pode ser
vista com interesse por um número crescente de criadores de conteúdo (um
escritor é também um criador de conteúdo, vale lembrar).
Conclusões (?)
Não, eu não tenho nenhum palpite para descrever o que
será o futuro das narrativas, especialmente as literárias, daqui a 3, 5 ou 10
anos. A única coisa que me atrevo a afirmar é baseada em umbiguismo: acredito
que continuarão a existir, ao menos enquanto dure essa geração à qual pertenço,
pessoas que amam, prioritariamente, a arte com a palavra e que continuarão a
gostar de ler bons livros, entendendo-se como bom livro, o conteúdo,
independente da forma como ele se apresenta.
Certezas só posso elencar duas: 1) continuarei a ler
livros (muitos deles escritos há várias décadas ou séculos) e 2) estarei atenta
às novidades – algumas me interessarão e outras preferirei deixar à curiosidade
(talvez seguida de desinteresse) de outras gerações.
E vocês, o que pensam sobre o futuro da narrativa?
Prefeririam que as coisas continuassem como as conheceram (seja em livros,
cinema ou séries de TV)? Gostam das mudanças que tem acontecido? Anseiam por um
uso mais intensivo de tecnologia na literatura, no cinema ou até (ousemos) no
teatro?
Maurem
Kayna é engenheira florestal, baila flamenco e se interessa por literatura
desde criança. Depois de publicações em coletâneas, revistas e portais de
literatura na web resolveu apostar na publicação em e-book e começou a se
interessar por tudo que orbita o tema, por acreditar que essa forma de
publicação pode ser uma das chances de aumentar o número de leitores no Brasil.
Autora da coletânea de contos Pedaços de Possibilidade, viabilizado pela
iniciativa da Simplíssimo. Sites: mauremkayna@uol.com.br
- mauremkayna.com/ - twitter.com/mauremk
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