Beco
por Cinthia Kriemler
Não tenho janela que dê para cena bonita. Nem para um
jardim visitado por pássaros bica-latas em frenesi de busca a um banquete de
migalhas. Nada de flores sem-vergonha se oferecendo aos olhos como damas da
noite. Nenhum parque onde crianças e idosos exponham o inevitável ciclo
tese-antítese — irracionalmente injusto
e belo — dos começos e fins.
Mas tenho o beco.
Durante anos, me recusei a olhar pelas vidraças. Nem
mesmo um debruçar para que as narinas sentissem os cheiros ordinários das
histórias urbanas; humanas, inumanas. Limitei minhas percepções ao para cá das
cortinas sempre fechadas em todos os cômodos. E me deixei encaixotar por
paredes seguras, por um teto limpo, linear, por um chão sem terremotos.
Quando as vozes me subiram da rua até os ouvidos de
primeiro andar, dediquei-lhes a leve rotação de cabeça que permito aos
incômodos, às coisas insignificantes, a tudo que está fora de lugar. Eram
apenas pessoas trazendo alguns tons de plenitude ao meu espaço blindado. Mas as
vozes ficaram, desde então. Recorrentes. Nítidas.
Três homens. Um deles denuncia a idade nos conselhos
que dá aos outros dois. Em cada frase, a contrapartida de um alerta, de um já
aconteceu comigo. É um velho. E os mais jovens se divertem com ele.
Às vezes, um deles não vem. E eu me pergunto o que
estará fazendo. Desconforta-me não saber. Uma sensação que só mais tarde
identifico como falta. Cada ausência, uma história inacabada. A namorada
indecisa entre ceder ou guardar para futura chantagem uma virgindade a ser
negociada a casamento. Um sofá onde quase tudo acontece entre as idas e vindas
à cozinha de um pai zeloso. E onde os sonhos de uma moça sem rosto se misturam
ao tesão de um rapaz sem intenções. Cada ausência, outra história sem desfecho.
O desespero do rapaz de voz grossa. Dívidas e os empréstimos que nunca deviam
ter sido feitos. E novos empréstimos. Um segundo emprego para fazer mais
dinheiro. Uma crença perversa nos jogos de loteria.
O velho me irrita. Não gosto dele nem das suas rotas de
fuga desgastadas. A bebida revelada no arrastado das frases; a ostentação de
uma força inexistente; o óbvio sentenciado como verdade. Não gosto do descaso
com que fala da própria mulher e do câncer que a tem levado aos poucos. Detesto
gente em negação. Gente que não se quer realidade. Que não aceita sofrer, que
olha para o outro lado para não fazer parte das dores, que se entrincheira em
salas e quartos confortáveis, seguros, limpos, lineares, sólidos. Gente que
cerra cortinas.
Hoje, me desenfreio. A janela aberta liberta meus olhos
ávidos. Encostados à porta dos fundos do pequeno restaurante italiano, três
homens falam e fumam. E eu vejo as vozes pela primeira vez. É apenas outra
noite de conversas e conselhos. Uma noite de beco.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
4 comentários
Voce nos conduz, magistralmente, por esse maravilhoso beco. Parabens, Cinthia.
Ô... Ficou um gosto de "quero mais", Cinthia! Arrasou como sempre.
Genial, como sempre! Nem me atreveria a tentar escrever com tal lirismo. Fazer isso e permanecer acessível é para poucos.
Sempre conduzindo muito bem as histórias e os textos, independente dos becos da vida! Parabéns...
Postar um comentário