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Quadro de Víctor
Hugo do Prado |
NEGUINHA
Sentou-se no lado direito do túmulo. O dia estava
ensolarado. Não era dia para ir ao cemitério, pensou. Sol é bom para passeio,
para praia, mas ela estava ali, colocando flores recém compradas em um vaso
grande, de porcelana pintada de azul e sem água. As flores não iam durar muito.
Mas que importa?
Observou detidamente a fotografia de um homem de queixo
quadrado e olhos azuis em um porta-retrato pequeno, de metal outrora dourado e
agora escuro. Olhou de perto.
Quebrou-se uma das pontas do porta-retrato, eu
posso trazer outro, mas não... mortos não reclamam de nada, pensou. Meu pai,
meu pai, murmurou com o olhar fixo na fotografia.
Lembra, pai? Lembra quando você me chamava de neguinha
feia? Lembra disso? Pois eu não esqueci. Você dizia com sua voz altissonante,
parecida com a voz do homem que vendia sonhos de nata e passava pelo bairro
pobre, de chão batido, gritando sob o sol do meio-dia: Sonhos, sonhos baratos.
Neguinha feia! Menina, você está cada dia mais negra,
mais magra e mais feia, repetia aos gritos, cuspindo saliva pelos cantos da
boca. E que vergonha você sentia da Neguinha feia, não é verdade, pai? Tinha
vergonha sim. Tinha vergonha de apresentar sua filha negra a seus parentes de
olhos azuis e cabelos mais ou menos loiros. Mamãe colocava um vestidinho branco
e minhas primas loiras riam de mim, dizendo: Parece mais negra ainda. Parece
piche. Parece noite escura. Parece jabuticaba. E você escutava e ria. Ria de
mim.
Que pai honesto ri da própria filha? E depois, como bom
homem, ainda enchia a boca de saliva ao dizer: Não sou racista, casei com uma
negra. Casou sim, foi porque eu ia nascer e o avô pediu ajuda ao Xangô. Foi
porque você estava com febre alta e não sabia nem o que dizia. Foi porque o tio
te arrastou até a igreja e ordenou ao padre que fizesse a cerimônia!...
Forte o tio Chico. Todo mundo o respeitava. Todos
fugiam quando seus olhos se incendiavam de raiva. Até você teve medo dele, pai.
Até você!... E hoje você não tem mais medo de nada. Está ai, na terra desse
cemitério, em um túmulo sem flores. E eu vim para te visitar, pai. Trouxe
algumas flores só para demonstrar que sou boa filha.
Escutou alguém chorar. Virou a cabeça. Uma mulher
estava diante do túmulo de mármore branco, bem perto dela. Não sou a única que
sofre, murmurou.
Trouxe flores, sim. Mas eu não vim pelas flores, não!
Estou aqui para dizer que não precisa mais ter vergonha de mim pai. Pois agora
eu sou uma das vozes do Brasil, pai. Você morreu sem saber, que pena que morreu
sem saber.
Mas eu vou te contar, eu herdei a voz da avó Eugênia, a primeira
mulher do avô. Aquela que fugiu com o mestre-sala de escola de samba. Eu sou
uma cantora negra, pai. Todos gostam de mim. Enquanto minhas primas brancas
trabalham de segunda a sábado, vendendo roupas chiques para as branquelas
ricas, eu sou famosa, pai. Eu vou comprar os vestidos que elas vendem e que não
podem comprar. E elas me olham com inveja. Elas têm inveja da Neguinha feia, da
Neguinha de cor de piche. Sabe por que, pai? Porque eu sou uma guerreira. Eu
triunfei pai. Eu sou negra e vencedora e tenho tanto orgulho disso!... É isso
aí, pai. Eu sou negra e tenho orgulho de ser negra.
Isabel
Furini é escritora e poeta. Seu poema Quixotesco fará parte
da exposição de artes plásticas, poesia e arte digital, cuja abertura será em
10 de Abril, 19 horas, no Instituto Cervantes de Curitiba, rua Ubaldino do
Amaral, 927, Alto da XV. A curadoria é de Carlos Zemek. O professor e ator de
teatro e TV Gerson Delliano realizará a leitura dos poemas.
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