Subterfúgios Urbanos
Se a literatura pouco faz
para transformar o mundo real, pode, e não raramente o faz, sub-repticiamente,
interferir na meta-ontogênese dos seres, sobretudo, nos de carne e osso e com documento
de identidade. A rigor, podem dar-lhes o quinhão de realidade e de visibilidade
que ainda não possuem, ou lhes são negados. Para aquele cuja identidade é
sobrepujada pela carne e, às vezes, pelo quase-só-osso nutrido pelas pedras de
crack, ter o que esperar é um luxo e como todo luxo, desnecessário. A alma ou o
resíduo dela – na ótica dos pessimistas profissionais – que vive na sarjeta
está condenada, mas não aos infernos, como poderia supor linhagem alta da
literatura dita erudita. Alma condenada? Só se for à liberdade. Ou talvez
condenada a essa espécie de redenção que não se sabe nunca redimida, porque, de
tal, jamais se viu necessitada. “Subterfúgios
urbanos”, de Wuldson Marcelo, explora essas humanas e, portanto, equívocas paisagens
com boa técnica e com o periscópio acionado sobre a Capital matogrossense.
“... quer ser Rebelde?
Esquece esse negócio de Orkut, Shopping Center, bolsa Carolina Herreira e não sei quê, e comece a botar fogo em
ônibus...”
O autor garimpa e encontra nas mal cuidadas calçadas de Cuiabá não os
brasões grafados em espanhol que se perderam nem os ‘pés de sol’ que nasceram
no século XVIII e continuam crescendo.
Da Cuiabá do Wuldson, de suas bem cuidadas linhas, brota de vez em
quando um diamante que já esteve escondido no meio dos peitos de alguma escrava:
Lupita, Bebel, Madalena... Ah, e aparecem de supetão não só o garimpeiro ou o
jagunço metafísico que facilmente encontramos no Shopping Goiabeiras. Se, por
um lado, houver sustos em nos deparar com neo-cativos do sexo a lamber a tela de
um computador, por outro, surgem Marias Gasolinas, essas latifundiárias dos
paralelepípedos, ditando regras filosóficas. Para as criaturas habituadas à
estadia nesse vazio, privilegiado porque periférico, o estrume dos cães vira fertilizante
de flores e de outras belezas... Fica transparecido em clareza só possível às
entrelinhas, como uma exigência de recuo em relação à luz elétrica se impõe se
quisermos ver melhor a Via Láctea: desses espaços marginais vê-se melhor o desenho
daquelas paisagens urbanas/humanas. ‘Subterfúgios’ eleva Cuiabá a centro. Centro
do quê, da América do Sul? Não, do Universo... isto, falando, e não
blablablando desde uma superfície escaldante. Superfície? Sim a do contemporâneo, que em si, nada mais é
que superfície... Superfície consciente de que se houver fundo será falso.
Sim, há também escorregões, lugares comuns e tal: “a noite era uma
criança”; e ainda o olhar da loira de um metro e setenta no
Shopping contemplando o mundo “projetado na selva de concreto”
Mas a linguagem em geral enxuta descreve cuiabanos periféricos,
não em suas interioridades e
profundidades, o que já não interessa a ninguém, mas em suas carnalidades. O que isso quer dizer?
Ser-e-estar é junto e os subterfúgios
não são exatamente esconderijos, antes, tangenciam a realidade para melhor
devassá-la: “mais um dia de mormaço insuportável em Cuiabá. Sua camisa vermelha
de algodão desenha um quadrado em seu tórax”. Os ‘aprendizes de assassinos’ e
os ‘Orfeus Kamikazes’ e as Madalenas possuem não somente desejos e história,
mas também Geografia.
Adê Otênio nasceu na cidade de Tapira, interior do Estado de São
Paulo. Há dois anos transferiu-se para Cuiabá, onde exerce a função de
engenheiro das entrelinhas. Escreve para ver se aproveita alguma coisa de toda
essa tristeza; isto ocorria também ao Manuel Bandeira e ao Rilke, mas eles
sabiam sofrer melhor porque não eram engenheiros.
Nenhum comentário
Postar um comentário