AS MULHERES POETAS NA LITERATURA BRASILEIRA (12)
Apesar das grandes
dificuldades que cercaram a vida destas duas poetas libertárias, Jacinta Passos
e Orides Fontela não cederam um milímetro em suas convicções. Ambas
enfrentaram, em circunstâncias e tempos diversos, preconceitos e estigmas. E
seus embates foram duríssimos. Só que as duas fizeram poesia de alta voltagem,
sem frouxidão e derramamentos emocionais. E mereceram a atenção e o aplauso de
nomes como Antonio Cândido, Sergio Milliet, José Mindlin e Maria Helena Chauí.
Infelizmente, as duas morreram pobres e incompreendidas --em sanatórios. E só
recentemente suas obras voltaram a ser publicadas. Presto aqui uma homenagem a
elas, alterando o parâmetro da série de 4 poetas em cada postagem. O talento de
Jacinta e Orides merece esta modificação --e este destaque. E eu quero
contribuir com o resgate dessa poesia alheia a correntes e modismos.
JACINTA PASSOS(1914-1973)
– poeta baiana, professora, jornalista, militante política e feminista, nasceu
em família rural abastada da região de Cruz das Almas, no Recôncavo Baiano. Foi
católica fervorosa e se transformou em comunista ardorosa, nas palavras da
filha, Janaína Amado. Publicou 4 livros: Nossos Poemas(1941), Canção da
partida(1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958),longo poema sobre a
Coluna Prestes, empreendida na década de 1920,que buscava mudanças políticas
para o Brasil.
Todos os livros de Jacinta
tiveram edições pequenas, e estão esgotados há muito tempo. Canção de Partida,
por exemplo, teve tiragem de apenas 200 exemplares, numerados e assinados pela
autora e ilustrados por Lasar Segall. E embora tenha despertado interesse e
atenção de nomes tão importantes como Mário de Andrade, Antonio Candido,Sérgio
Milliet e Roger Bastide, a poesia vigorosa e libertária dessa poeta acabou
caindo no esquecimento. Eu mesmo, que circulo nesse universo da poesia há mais
de 40 anos, só muito recentemente tive acesso ao seu trabalho --e à sua
trajetória marcada por tantos conflitos e dificuldades.
Mulher excepcional, no
sentido mais literal da palavra, Jacinta Passosabandonou a formação religiosa,
comum na época, e passou a lutar, a partir do início da Segunda Guerra Mundial
pela paz mundial, contra o fascismo, a opressão das mulheres e das minorias
exploradas--conforme destaca Eliane F.C.Lima, em seu blogue.
Mas bem antes disso,
quando tinha uns 18 anos, o catolicismo convencional de Jacinta já começou a
migrar para o catolicismo social. Aquele que provocou e ainda provoca polêmicas
e dissenções. Exemplar é o caso da Teologia da Libertação, tão influente na
América Latina,e que acabou levando um de seus mais renomados integrantes, Frei
Leonardo Boff, a ser julgado pelos tribunais do Vaticano.
O viés desse catolicismo
social,formulado pela encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, procurou
oxigenar e aproximar a igreja católica de uma nova realidade, desenvolvendo
noções como a de bem comum (os bens comuns seriam de responsabilidade de toda a
sociedade) e a de destinação universal dos bens (os bens deveriam ser divididos
com igualdade entre os homens)
Segundo sua filha, Janaína
Amado, responsável pela publicação do livro JacintaPassos, Coração Militante
(2010) sua mãe vivenciou paixões intensas: por homens que a amaram, pela filha
da qual foi afastada e pelo partidão onde permaneceu 30 anos na experiência
clandestina. O calvário de Jacinta Passos começou em 1951, quando ela passou a
sofrer crises nervosas e delírios persecutórios. Diagnosticada como
esquizofrenica , vivenciou a violência extrema de diversos internamentos em
sanatórios, tratada a eletrochoques, injeções de insulina e isolamento severo.
“Mas jamais deixou de
escrever. Em Aracaju, por volta de 1962, foi morar sozinha em um povoado de
pescadores. Vivia muito pobremente, em um barraco de madeira, mas possuía uma
máquina de escrever, onde, à noite, datilografava poemas e textos políticos,
que distribuía pelas ruas durante o dia.”
Janaína conta, ainda, que
mesmo após o golpe militar de 1964,Jacinta Passos não abandonou a intensa militância junto a pescadores, estudantes e
trabalhadores.”Em 1965 foi detida quando pichava muros da cidade com palavras
de ordem contrárias à ditadura. Foi recolhida ao 28º BC de Aracaju e depois
transferida para a Casa de Saúde Santa Maria, onde permaneceu até morrer, aos
57 anos, no dia 28 de fevereiro de 1973.”
O livro Jacinta Passos,
Coração militante, lançamento conjunto das Editoras Corrupio e Edufba em junho
de 2010, reúne todo o material encontrado a respeito de Jacinta Passos. Contém
ainda poemas esparsos, originalmente publicados em jornais e revistas, jamais
reunidos em livro.E uma bela biografia que mostra a trajetória singular da
poeta, bem como sua fidelidade às idéias e valores que a levaram a chocar-se
contra tudo e contra todos— na contramão do tempo.
Canção do amor livre
Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.
Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.
Se me quiseres amar.
Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.
Teu corpo.
Relâmpago depois repouso
sem memória, noturno.
Cantigas das mães
(para minha mãe)
Fruto quando amadurece
cai das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.
Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.
Tão lindos, tão
pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.
Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
por cinco multiplicaram
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.
Foram viver seus destinos,
sempre, sempre foi assim.
Filhos juntinhos de mim,
Berço, riso, coisas puras,
briga, estudos,
travessuras,
tudo isso já passou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.
Diálogo na sombra
– Que dissestes, meu bem?
Esse gosto.
Donde será que ele vem?
Corpo mortal.
Águas marinhas.
Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no
fundo e no fim.
– De quem falas amor, do
mar ou de mim?
Canção atual
Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.
Não quero a rosa do tempo
aberta
nem o cavalo de nuvem
não quero
as tranças de Julieta.
Este chão já comeu coisa
tanta que eu mesma nem
sei,
bicho
pedra
lixo
lume
muita cabeça de rei.
Muita cidade madura
e muito livro da lei.
Quanto deus caiu do céu
tanto riso neste chão,
fala de servo calado
pisado
soluço de multidão.
Coisas de nome trocado
– fome e guerra, amor e
medo –
Tanta dor de solidão.
Muito segredo guardado
aqui dentro deste chão.
Coisa até que ninguém viu
ai! tanta ruminação
quanto sangue derramado
vai crescendo deste chão.
Não quero a sina de Deus
nem a que trago na mão.
Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.
1935
Tenso como rede de nervos
pressentindo ah! novembro
de esperança e precipício.
Fruto peco.
Novembro de sangue e de
heróis.
Grito de assombro morto na
garganta,
soluço seco dor sem nome.
Ferido.
De morte ferido. Como um
animal ferido. Luta
de entranhas e dentes.
Natal.
Sangue. Praia Vermelha.
Sangue.
Sangue. É quase um fio
escorrendo
sangrento
tenaz
por dentro dos cárceres,
nas ilhas
e nos corações que a
esperança guardaram.
Eu serei Poesia
A poesia está em mim mesma
e para além de mim mesma.
Quando eu não for mais um
indivíduo,
eu serei poesia
Quando nada mais existir
ente mim e todos os seres,
os seres mais humildes do
universo,
eu serei poesia.
Meu nome não importa.
Eu não serei eu, eu serei
nós,
serei poesia permanente,
poesia sem fronteiras.
ORIDES FONTELA (1940-1998)
poeta paulista de São João da Boa Vista, interior de São Paulo. De família
muito pobre, seu pai era operário analfabeto, viveu sempre em dificuldades financeiras.
Aos 27 anos, depois de cursar a escola normal na terra natal, veio morar em São
Paulo e realizar dois sonhos: entrar na USP e publicar um livro.
Fez filosofia, exerceu o
magistério e trabalhou como bibliotecária na rede estadual de ensino.
Desde o primeiro livro
Transposição(1969) o discurso apurado deOrides Fontela está marcado pela
contenção e pela economia verbal. Aliás, essa característica foi destacada por
todos os críticos que se ocuparam de seus livros. Alguns apontaram, nessa marca
personalíssima, reverberações da poesia descarnada de João Cabral. Outros,
falaram da impessoalidade, da busca pela palavra exata e o culto a um silêncio
esfíngico.
O certo mesmo é que seus
poemas são despidos de tudo o que pode ser considerado acessório e dispensável
em poesia. A produção deOrides encontra-se publicada em seis obras, todas de
poesia:Transposição (1969), Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea(1986), Trevo
(1969-1988, reunião de todas as outras obras) e Teia(1996). A única obra em
prosa foi Almirantado, publicada no número 4 do caderno Almanaque de literatura
e ensaio (1977).
Segundo o poeta Donizete
Galvão “ela reconhecia que era áspera, sem travas na língua e que se indispunha
com as pessoas.” E a comprovação desse seu temperamento explosivo são essas
palavras pinçadas pela poeta Nydia Bonetti:“Reclamam, porque eu não falo de
amor. Mas então não leram Homero... Eu quis chegar no miolo das coisas. Já fiz
duas leituras para auditório de jovens e eles gostaram muito. Isso me deixa
reconfortada. Mas, infelizmente, nossos especialistas ainda têm uma visão muito
olímpica da poesia. (...) Mas é a velha história: é melhor que falem mal, mas
falem de mim. Eu preciso de dinheiro para viver. Minha vida é um retrato da
vida dos aposentados do Brasil. E a vida dos poetas no País. Eu queria ser mais
enxuta, queria escrever poemas exemplares à moda de Brecht. Sei que não agrada,
porque a moda hoje é o barroquismo. A moda é escrever como o Alexei Bueno. A
moda é ser difícil. É um fenômeno sociológico e não adianta discutir com os
fatos da sociologia. Não quero ir contra ninguém, só quero escrever meus
poemas. (...) Eu sou pequena, pobre mulher que escreve uma poesia boa, mas,
coitada, não é do meio. Não tenho família, não tenho bens, não freqüento os
lugares chiques. É como se eu estivesse invadindo o Olimpo.”
Tão verdadeira e por isso
tão poética, Orides Fontela recebeu o prêmio Jabuti de Poesia, em 1983, com
Alba , e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1996, com Teia
. Sempre com dificuldades financeiras, no final da vida, acabou sendo despejada
de seu apartamento no centro da cidade e foi viver com sua amiga Gerdana Casa
do Estudante, um velho prédio na Avenida São João. Era uma pessoa irritadiça e
muitas vezes se meteu em encrencas, brigando com seus melhores amigos. Morreu
em Campos de Jordão, aos 58 anos, no dia 4 de novembro de 1998, de
insuficiência cardiopulmonar, na Fundação Sanatório São Paulo.
Em 2006, parte da obra de
Orides --"Transposição", "Helianto, "Alba",
"Rosácea" e "Teia"-- foi compilada em um exemplar pela
Cosac Naify,POESIA REUNIDA com bibliografia ampla e atualizada.
o espelho dissolve
o tempo
o espelho aprofunda
o enigma
o espelho devora
a face
AXIOMA
Sempre é melhor
saber
que não saber.
Sempre é melhor
sofrer
que não sofrer
Sempre é melhor
desfazer
que tecer
FALA
Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real nunca é
suave.
Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.
Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos
despedaça.
Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos
fere.
(Toda palavra é crueldade)
TEIA
A teia, não
mágica
mas arma, armadilha
a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente
a teia, não
arte
mas trabalho, tensa
a teia, não
virgem
mas intensamente
prenhe:
no
centro
a aranha espera.
AS SEREIAS
Atraídas e traídas
atraímos e traímos
Nossa tarefa: fecundar
atraindo
nossa tarefa: ultrapassar
traindo
o acontecer puro
que nos vive
Nosso crime: a palavra.
Nossa função: seduzir
mundos.
Deixando a água original
cantamos
sufocando o espelho
do silêncio
DESTRUIÇÃO
A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.
A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.
A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.
Rubens Jardim,
67 anos, jornalista e poeta. Foi redator chefe Gazeta da Lapa e
trabalhou no Diário Popular, Editora Abril e Gazeta Mercantil.
Participou de várias antologias e é autor de três livros de poemas:
ULTIMATUM (1966), ESPELHO RISCADO (1978)e CANTARES DA PAIXÃO (2008).
Promoveu e organizou o ANO JORGE DE LIMA em 1973, em comemoração aos 80
anos do nascimento do poeta, evento que contou com o apoio de Carlos
Drummond de Andrade, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Raduan
Nassar e outras figuras importantes da literatura do Brasil. Organizou e
publicou JORGE, 8O ANOS - uma espécie de iniciação à parte menos
conhecida e divulgada da obra do poeta alagoano. Integrou o movimento
CATEQUESE POÉTICA, iniciado por Lindolf Bell em 1964, cujo lema era: o
lugar do poeta é onde possa inquietar. O lugar do poema são todos os
lugares... Participou da I Bienal Internacional de Poesia de Brasília
(2008) com poemas visuais no Museu Nacional e na Biblioteca Nacional.
Fez também leituras no café Balaio, Rayuela Bistrô e Barca Brasília. E
participou da Mini Feira do Livro, com o lançamento de Carta ao Homem do
Sertão, livro-homenagem ao centenário de Guimarães Rosa. Teve poemas
publicados na plaquete Fora da Estante, (2012), coleção Poesia Viva, do
Centro Cultural São Paulo. Páginas na Internet: Site: Rubens Jardim e Facebook: Rubens Jardim
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