CARTA A UM SACERDOTE JUDEU
Rabino
É estranho dirigir esta
carta a um homem cujo cargo não reconheço nas esferas em que convivo. Por isso,
não vi com inserir aqui um “caro”, sequer um “senhor”. Estou, quase sempre, em
meio a homens da política, da economia, das artes, mas nunca, ou quase nunca,
na presença de homens de fé. Não saberia o que fazer ou dizer em sua presença
que não soasse a rebeldia ou a heresia.
Não me entenda mal. Sou
uma mulher de fé. Apenas que não de uma única fé, ou, pelo menos, não dessas
fés professadas na pele, como marcas no dorso de animais. Nem de qualquer outra
que se vista de paramentos e símbolos para convencer, para exibir força, para
arrebatar adesões. Fé é coisa individual, cunhada por percepções e sentimentos
que nos atingem, moldam, convencem, confortam ou impulsionam. Mas de forma
individual. Tudo o mais é domínio. Ou mentira. Ou coletivo submisso.
No entanto, aconteceu de
eu esbarrar com seu livro numa tarde de calor e livraria. Um olhar mais
prolongado à capa e uma leitura das orelhas, em homenagem àquele título
atraente: “A alma imoral”, e lá estava eu, cativa. Um rabino? Um sacerdote
judeu? Falando do imoral? Que fosse italiano, polonês, espanhol! Sacerdotes não
falam do imoral.
Evitei, de imediato, o
folhear. Como eu poderia? Detesto papéis dúbios, posições que confundem,
prática e discurso dissonantes. Aos homens santos, as coisas santas. Nada de
desvios. Que de imoralidade vivemos nós, os que respiramos fora da religião e
dos acertos com deus, os que não brigamos em rinhas para ganhar um céu, os que
não nos sujeitamos ao marca-passo das alienações. Mas aquele nome, aquele
título, ah, sim, foi isso que esmurrou a porta do meu cérebro exigindo uma
chance.
Um rabino escreve sobre
deus, vive em sinagogas, congrega crédulos sedentos da palavra. De qualquer
palavra que alivie desejos, que perdoe infrações — essas chamadas de pecados —,
que conduza a um banalizado e eterno paraíso. Mas um rabino não fala do
proibido.
Abri. Assim mesmo. De uma
vez. E meus olhos leram sobre o transgredir. E sobre a traição. E sobre a
desobediência. E sobre o desrespeito. Não eram as palavras de um rabino, de um
sacerdote judeu. Pontos; contrapontos. Palavras de um homem inquieto,
inquietante. De um homem sereno, firme. Pontos; contrapontos. Nem santidade,
nem doutrinação. Uma proposta. A alma que transgride para transformar. Que
transforma para adaptar-se. Evolutiva como as espécies. Sobrevivente.
Lembrei-me da minha fé
ciclotímica, repleta de um incessante
questionar-refletir-ouvir-depurar-acolher-questionar-cuspir-procurar-questionar,
mas sempre fé. Inabalável em todas as suas dúvidas. Transgressora, imoral. Uma
fé metamórfica. E tive vontade de acreditar para valer na existência de um deus
que paira sobre todas as coisas. Que faz com que o sentido de tantos caminhos
seja um lugar aonde chegar. E que dá outro propósito aos sofrimentos, às
feridas, à deterioração da carne e da mente que não seja o de ganhar a vida
eterna.
Não acredito nesse deus da
livraria. Nem acima nem abaixo das coisas. Na minha fé não há um deus a quem
enfrentar, com que brigar, a quem culpar, a quem implorar, a quem chorar ou
pedir um pouco de carinho e de descanso. Não há respostas. Não há deus. Apenas
silêncio. Mas então, por que meu silêncio não se cala? Por que me revolto com a
inexistência dessa divindade que acende o imaginário de alguns, a esperança de
outros? Qual o sentido disso tudo para os meus pensamentos que nunca cessam de
se rever? Que estão sempre revogando o instituído e ordenando tentativas
anárquicas? Como eu poderia ser uma mulher de fé, se sou uma mulher sem deuses?
Estou cansada desta minha
fé diferente. Desta perversidade reconfortante à qual me incentivo
cotidianamente, Da serenidade entediante que só me convém em breves hiatos. Sou
uma criatura que se convida e se lança prazerosamente às violações. Contudo,
não as do corpo, que sirvo de sexo, álcool, diversão e cuidados em iguais
partes. Minhas violações são imateriais. Nutro a minha vida na destruição do
vigente, no questionamento do que se enraíza em doentia imutabilidade. Não
aceito preceitos. Aceito a fé. A que tenho em algumas coisas; a que tenho no
nada. No nada que incita a repor. No nada que é inexistência a preceder
existência.
Será essa a alma que
transgride? Esse espaço que transborda e se esvazia em rompimentos? Essa força
vital que corrompe o comodismo e se propõe à honestidade da incerteza?
Se for verdade que seja
desse jeito, posso, enfim, pensar que alguma parte de mim é alma. Imoral e
santa. Desobediente e dócil. Fiel e traidora. Consentida e rebelada.
Se for mesmo assim, eu
aguento ter alma.
Um abraço imoral,
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
2 comentários
Como de hábito, excelente texto! Gratificante leitura!
Obrigada, Marco Aurélio!
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