Morreu
Todos da turma ficaram
consternados com a notícia da morte do Ferreirinha. Souberam que o avião que
retornava de Paris, onde o Ferreirinha anunciou que iria passar suas
costumeiras férias internacionais, desaparecera numa tempestade sem deixar
rastros...
Quem chegou com a notícia foi o Altair, encarregado pela turma de
descobrir no aeroporto que horas aterrissaria o avião, pois só sabiam o dia em
que se daria o retorno. Dessa vez desejavam fazer-lhe uma surpresa na chegada.
Porém, seu interesse se chocou com a informação de que o único vôo de Paris
para aquele dia não chegaria mais...
Nunca mais! E dizer que os amigos do
boteco pensavam em surpreendê-lo com faixas de boas-vindas! Era mesmo
inacreditável. Logo o Ferreirinha... que amava viver! Logo o Ferreirinha, que
na véspera de partir, no balcão do boteco, estourou um champanhe e disse num
falso tom de segredo, mas suficientemente alto para que todos ouvissem:
"No céu não há champanhe... Por isso tomemos aqui!" Em seguida ergueu
o cálice e brindou em francês com a turma: “A la santé!” Ah, Ferreirinha...
Você não existe!
O sentimento era unânime:
"Não! O Ferreirinha não!". Se tinha alguém que não merecia partir
antes da hora, esse alguém era o Ferreirinha. Nunca foi um homem bonito, mas
para as mulheres, com toda certeza, era o mais atraente da turma. Quem sabe até
mesmo por isso tenha se lapidado com tanto esmero; fosse belo de nascença,
provavelmente acomodar-se-ia, pois suas conquistas não iriam requerer esforço
algum... Como não era o caso, muito do seu encanto, que garantia a primazia com
as mulheres, vinha justamente da sua sofisticação, do seu vocabulário
rebuscado, do charme que exalava... É isso!
Tivesse que descrevê-lo com uma
única palavra, diria que era um homem charmoso! Não era rico, mas pelas histórias
que contava, definitivamente ele sabia viver! Homem viajado, era o único que
conhecia o exterior. O Euclides, marido da Dulcinha, também já tinha viajado
pra fora, mas ao Paraguai e em busca de badulaques para revender com algum
ganho, o que, cá pra nós, não tinha o mesmo glamour de passear em Paris,
Firenze ou Veneza. E depois, o Ferreirinha ia todo ano... Às vezes até mais de
uma vez por ano! Dizia-se quase nativo... Já estava até arrastando o
"r"!
Há muito tempo que os amigos
de balcão já sabiam: Quando o outono chegava no Brasil ele desaparecia do
boteco em busca daquela que considerava a mais romântica das estações, e só
voltava depois de trinta ou quarenta dias, repleto de histórias fascinantes
para contar... "Ah, meus amigos... enquanto aqui as folhas caem, no outro
lado do mundo a vida está desabrochando novamente...”, dizia, entre um gole e
outro de champanhe. Depois, fingindo segredo, completava: “Na primavera as
italianas e francesas ficam ainda mais viçosas e exuberantes... parecem renascer...
estão prontas para o amor...".
E se com os homens o
Ferreirinha já era quase uma celebridade, com a ala feminina então... era uma
unanimidade! A sua fama de bon vivant permitia a ele praticamente rivalizar com
os galãs da novela, com a vantagem de que ele era próximo e acessível.
Quando o Ferreirinha
começava a descrever "...as folhas coloridas brotando alegremente às
margens do Sena, nas mesmas árvores que ele vira na estação anterior
"chorarem" folhas secas que caiam uma a uma, como lágrimas que não
conseguiam segurar..." Nesse momento as garotas disputavam praticamente a
cotoveladas um lugar ao seu lado só para ouvi-lo falar. Todas elas (loiras ou
morenas, casadas ou solteiras) não só se identificavam com as histórias, como,
secretamente, achavam que estavam sendo contadas para si.
O fato é que os ares
europeus, não se sabe se mais italianos ou franceses, tornaram o Ferreirinha um
exímio sedutor. Quando escolhia sua presa, sabiam que era só uma questão de
tempo para dominá-la... pouco tempo! "Cantada em francês ou italiano é
arma branca da paquera!" sentenciavam os seus amigos quando o viam em
ação. De fato, bastava o Ferreirinha descrever o fim de tarde na ponte Vecchio
ou falar dos aperitivos tomados na Plaza de San Marco para provocar gritinhos...
Era só contar das baguetes de miolo branco e casca dourada regadas a Beaujolais
Nouveau nos bistrôs de Paris ou dos passeios de Bateaux Mouche sob a luz do
luar para elas suspirarem... E se falasse das luzes ascendendo uma a uma no fim
de tarde na Champs Elysees que todas elas desejavam se entregava sem nenhuma
resistência.
"Vocês já ouviram um
acordeon chorando numa madrugada em Pigalle? Já experimentaram um purê de
beterraba com algas e sementes de manjericão do Le Chateubriand? Já apreciaram
o frescor dos frutos do mar vindos da Bretanha?" perguntava pra ninguém,
em voz alta, entre suspiros seus e de quem estivesse a sua volta. Era covardia,
até os invejosos faziam fila para ouvir seus relatos. Contudo, se nada disso
desse certo com a pretendente, o que era raro, erguia despretensiosamente um
bordeaux como se não tivesse sendo observado, olhava fixamente para o conteúdo
que girava no balanço delicado que imprimia ao cálice e, como quem está com o
pensamento distante, arranhava uma estrofe: " Que c'est triste
Venise... Quand on ne s'aime plus...
" Que c'est triste
Venise...". Me diz: Dá pra resistir?
Por isso a tristeza
generalizada com a notícia da queda do avião que trazia o Ferreirinha... No
boteco, muitos olhos marejados, muitas fungadas e até um choro desesperado da
Glorinha, mulher do Alceu, o que evidentemente gerou certo desconforto no
marido, principalmente quando ela disse que agora já não tinha mais razão para
viver... O marido estranhou tanto pesar, mas achou que a ocasião não comportava
muitas perguntas. O fato é que a ausência dele deixaria um vazio no happy hour
do boteco. Foi aí que o inesperado aconteceu:
– Voilà! – chegou de braços
abertos o Ferreirinha, abraçando o ar, querendo com isso dizer que abraçava a
todos...
– Ferreirinha?! – gritaram
em uníssono todos do boteco, como se tivessem diante de uma assombração.
O Ferreirinha, que ainda não
sabia que ha poucas horas havia sido decretado morto, e que os amigos, embora
sem o corpo, já discutiam os detalhes do velório, ainda brincou: "que
caras são essas? Até parece que morreu alguém!". Antes tivesse ficado
quieto! De fato algo havia morrido, ou melhor, estava prestes a morrer... O
personagem que o Ferreirinha criou para si mesmo e que interpretou com tanto
sucesso por anos a fio de enganação, já não tinha mais como resistir as
evidências. Estava mais que claro: Era um embuste... Uma enganação!
– Fez boa viagem? – provocou
um deles.
– Médio... – respondeu,
balançando a mão no ar, fazendo pouco caso, sem saber que estava dando corda
pra se enforcar – Na verdade já fiz melhores! – arrematou com desdém. Não
contente, ainda acrescentou:
– Sabe como é... Primeira
classe é bom, dormi como se tivesse nos seios de uma madona. E o champanhe que
servem não é nada mal... mas nada como o boteco da gente! – levantando o
indicador no ar, sinalizando ao garçom que aguardaria na mesa o seu costumeiro
balde com gelo e espumante.
– O seu avião caiu,
Ferreirinha! – retrucou o garçom, deixando dúvidas se buscaria algo.
Silêncio...
– Caiu?
– A resposta veio na forma
de um balançar firme de cabeças... Muitas cabeças! Todas que estavam no bar.
– Merde!!! – foi só o que
conseguiu dizer, avaliando a situação.
– Se você não estava em
Paris, onde diabos estava? – questionou um dos fiéis amigos que, incrédulo,
assim como os demais, o rodeava querendo respostas.
O ferreirinha, por uma
fração de segundo, até pensou em dizer Roma, Viena ou Barcelona... Mas
reconsiderou ao ver alguns dos frequentadores se aproximarem com garrafas nas
mãos... garrafas vazias...Como eram seguras
pelo gargalo, de mão cheia, entendeu que não era para celebrar.
– Botucatu! – anunciou com a
testa franzida e os olhos fechados, esperando pelo pior. Acontece que o
assombro foi tanto que todos congelaram. Nenhuma reação além do desmaio da
Glorinha e o "Óooooo..." coletivo foi constatada.
– Botucatu? – repetiu um
deles, o mais próximo, fazendo biquinho ao pronunciar – Já sei... Provavelmente
uma região de vinhos lá pro sul da França, certo? Botucatúuu...
– Isso! – acrescentou outro
leal amigo, recusando-se a acreditar no que já era óbvio para os demais – Deve
ser algum vilarejo centenário... Certo? Coisa chique!
– Não! – corrigiu o
Ferreirinha, sabendo que seu tempo de glória acabara – Botucatu mesmo...
próximo de Avaré!
O silêncio que se
estabeleceu foi pior do que se tivessem gritado algo com ele. Não havia raiva,
só decepção... Demorou algum tempo até que alguém perguntasse algo.
– Então você nunca...?
– Nunca – escondendo a
cabeça entre os braços – o mais longe que fui foi a Itapetininga.
– E aquela vez que voltou
com a perna engessada... um tombo de esqui na Suíça, não foi? Foi desviar de um
turista japonês com câmera na mão e...
– Levei um carrinho no
futebol.
– Você disse que foi na
neve! – insistiram.
– Grama sintética... –
consertou.
Silêncio...
– E a gôndola que você
roubou? – retruca outro – Nunca esqueci dessa história... fez uma serenata
embaixo da janela de uma garota num dos canais de Veneza... Depois escalou pela
murada...
– Ãn ãn – balançando a
cabeça.
Consternação geral...
– Então nunca...?
– Nunca!
– Nem fez amor no elevador
da torre Eiffel com uma escritora que conheceu em um bistrô?
– Tour Eifeel... – repetiu
suspirando – Só conheço por foto! Na real eu tenho medo de altura...!
– E a Brigitte? – sem se
conter, intrometeu-se o Gilmar – a tal francesinha... você sabe... cintura
fina, seios GG, o pai foi da Résistance na II guerra...
– Essa existe! – confirmou
com um sorriso amarelo.
– Uffffffff – respiram
aliviados.
– Mas o nome verdadeiro é
Berenice.
– O pai dela não era da Résistance?
– Quase... Do sindicato...
de São Bernardo. Ela se mudou pra Botucatu com a mãe, então, um dia, numa das
férias que eu passei lá...
Mas ninguém mais queria
ouvi-lo.
Depois desse dia, que ficou
conhecido como o dia da revelação, o Ferreirinha até continua frequentando o
boteco, mas suas histórias já não têm mais a mesma plateia. Agora, basta a
mínima suspeita de embuste nos seus novos relatos para botarem-no pra fora do
boteco a safanões. Aliás, precavido, como primeira medida de segurança, tratou
logo de perder o sotaque, o que comprometeu gravemente o apelo das suas
histórias. Além disso, nunca mais falou de além mar... (descobriu-se inclusive
que ele nunca viajou de avião). Para quem pedia licença dizendo s'il vous
plaît, agora o Ferreirinha tem medo até de pedir um croissant!
Mas a verdade é que nem tudo
piorou na turma de lá pra cá... Coincidentemente a Glorinha, mulher do Alceu,
está novamente apaixonadíssima pelo marido! Até voltaram a fazer amor! A única
coisa que o incomoda um pouco é que na hora "h", ao invés dela dizer
"sim... sim...", ela às vezes solta uns "uí... uí...". É
mesmo muito estranho! Mas como em time que está ganhando não se mexe...
Jean Marcel- Escritor,
professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor
voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o
blog brisaliteraria.com
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