Fraude jornalística dos "Diários de Hitler" completa 40 anos
Editores da revista alemã "Stern" estavam seguros que tinham "o furo do século", ao adquirir supostos diários do ditador. Mas caso se revelou rapidamente um dos maiores exemplos de mau trabalho jornalístico do século 20.
Em 25 de abril de 1983, 27 equipes de televisão e mais de 200 jornalistas se reuniram na sede da editora Gruner + Jahr, em Hamburgo, Alemanha, para um sensacional furo de reportagem: os editores da revista Stern iam apresentar à imprensa nada menos do que os diários do ex-chanceler do Reich alemão Adolf Hitler (1889-1945).
Tumulto, vozes excitadas, barulho de câmeras fotográficas, tempestade de flashes. Entusiasmado, o repórter da Stern Gerd Heidemann, que "descobriu" os diários, não resiste a posar com os cadernos pretos, 12 ao todo, cheios de supostas anotações pessoais do ditador nazista. As fotos correm mundo.
Três dias mais tarde, os supostos diários eram publicados numa edição especial. Já contando com o alto interesse, a tiragem inicial de 1,8 milhão fora ampliada, com mais 400 mil exemplares, a 3,50 marcos (cerca de 1,75 euro), em vez dos 3 marcos usuais.
Cheio de orgulho, o então-editor-chefe da Stern, Peter Koch, anunciava: "A história do Terceiro Reich terá que ser, em grande parte, reescrita." Entretanto, como hoje provam as análises, o que se projetava era uma imagem histórica totalmente distorcida.
"O maior desastre da história da Stern"
De início, os leitores ficam sabendo... nada, além de uma sucessão de banalidades privadas. A companheira de Hitler, Eva Braun, queria ingressos grátis para os Jogos Olímpicos de 1936, para irritação do "Führer". Ele sofre de achaques pouco lisonjeiros: "Atendendo à vontade de Eva, mando meus médicos me examinarem a sério. Devido às novas pílulas, tenho forte flatulência e, como disse Eva, mau hálito."
Há um bom tempo, tanto historiadores quanto colegas de outros veículos de imprensa já não acreditavam que as anotações fossem legítimas. Quando o Departamento Federal de Investigações (BKA) apresentou seu laudo, 12 dias após a publicação, a prova das falsificações mostra-se tão banal quanto irrefutável: o papel de que são feitos os cadernos ainda não existia durante o regime nazista, sua fabricação só começara na década de 1950.
O escândalo é total. O Ministério Público abre investigações, os principais implicados, o repórter Heidemann e o falsário Konrad Kujau, que fabricou os falsos diários, respondem a processo e são condenados a vários anos de prisão.
Kujau morreu de câncer em 2000, Heidemann ainda vive em Hamburgo, em condições modestas. Mais tarde, a Stern classificaria o caso como "o maior desastre concebível da história da revista", e levou anos para se recuperar do vexame.
Vista grossa para discrepâncias gritantes
Flashback para os anos 70: o pintor e talentoso falsificador de quadros Konrad Kujau se apresenta como negociante de antiguidades e há anos fornece a Fritz Stiefel, ex-integrante da organização paramilitar nazista SS, o braço paramilitar, supostos artefatos nazistas, entre os quais manuscritos e pinturas da autoria de Hitler.
Ele também mostra ao apaixonado colecionador o primeiro "diário de Hitler" que falsificara. Ambos comparam a grafia com a de outros escritos do ditador – igualmente falsificados por Kujau – e declaram o caderno autêntico.
Stiefel acaba conhecendo o jornalista Gerd Heidemann, também ele colecionador entusiástico de relíquias nazistas, e lhe mostra o diário. O colaborador da Stern fareja um furo de reportagem. Corre o boato de que os diários teriam sido resgatados no local da queda de um avião nazista, em território que havia ficado na Alemanha Oriental (RDA). Heidemann vai até o local e se convence de que os cadernos haviam sido de fato encontrados ali.
Ele só partilha a descoberta com uns poucos colegas do semanário, e finalmente consegue entrar em contato com Kujau. Este há muito estava ciente de que o jornalista era um peixe enorme em seu anzol. A oferta não se faz esperar: quando a Stern oferece 2 milhões de marcos pelos cadernos, o falsário conclui o golpe. No processo, o próprio Heidemann embolsa parte das somas canalizadas para Kujau.
Os primeiros três diários são imediatamente examinados. Historiadores de renome, peritos do Arquivo Federal Alemão e do Departamento Estadual de Investigações da Renânia-Palatinado logo atestam sua autenticidade. Ninguém se dá conta de que algumas das amostras apresentadas aos autores da perícia para comparação são igualmente obra de Kujau.
Tanto a editoria da revista quanto os examinadores fazem vista grossa para as numerosas inconsistências. É sabido e comprovado que Hitler era preguiçoso para escrever, não combinava com uma alguém descrito como impaciente e impulsivo ter preenchido tantos volumes à mão – e numa escrita suspeitosamente bem cuidada e sem erros riscados às pressas.
Detalhes como esses são simplesmente varridos para debaixo do tapete. Mesmo os erros mais crassos logo recebem uma explicação benevolente. Nas capas dos cadernos lê-se apenas "FH", em letras góticas: as iniciais de Hitler? A ganância fornece um certo grau de fantasia aos implicados: claro, "FH" quer dizer "Führer Hitler".
Assunto para comédia satírica
Se as circunstâncias não fossem tão atrozes, a história toda beiraria a farsa. E de fato: o episódio tem sido material para o cinema e a televisão. Em 1992 Helmut Dietl o levou às telas na sátira Os irresistíveis falsários, indicada para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. E em 2021 a emissora comercial RTL+ apresentou a minissérie Faking Hitler (Falsificando Hitler).
Mas o escândalo também é objeto de estudo sério: uma equipe de pesquisa da emissora alemã NDR digitalizou os manuscritos, em grande parte ilegíveis, com auxíliio de inteligência artificial. Em fevereiro de 2023, ela publicou todos os 60 volumes numa edição online comentada (apenas em alemão).
O historiógrafo e cientista político Hajo Funke situa as anotações no devido contexto histórico, os fatos históricos são minuciosamente comparados com os textos de Kujau. Uma linha cronológica permite se reportar aos diferentes anos; e a máquina de busca leva diretamente aos trechos relacionados a "Eva", "Goebbels", "Stalin", "judeus", "Mussolini", mas também "mau hálito".
Se até então apenas trechos dos "diários" tinham sido divulgados, e poucos especialistas, por exemplo, do Arquivo Federal Alemão, tido acesso aos diários falsificados, agora quem quer se interesse pelo assunto pode se aprofundar na estranha fábula que o falsário Konrad Kujau teceu em torno de Hitler.
Negação do Holocausto e os intestinos do Führer
Um aspecto salta imediatamente aos olhos: não há nos "diários" qualquer indicação de que Adolf Hitler tivesse promovido ativamente a perseguição e extermínio dos judeus no Terceiro Reich. Pelo contrário: o ditador nada sabia do Holocausto e teria se engajado zelosamente pelos judeus.
Nessa versão distorcida da história, Hitler escreve, no fim de abril de 1933: "As medidas contra instalações judaicas, iniciadas no dia 1º, me parecem violentas demais, adverti imediatamente os homens responsáveis por elas. Alguns também tiveram que ser expulsos do Partido."
A respeito dos atos brutais contra a população judaica, nos pogroms de 9 de novembro de 1938, a famigerada "Noite dos Cristais", o Hitler fictício comenta, indignado: "Não é possível somas de milhões e milhões da nossa economia serem aniquiladas por alguns cabeças-quentes, só em vidro. [...] Fui informado de alguns abusos nada bonitos por alguns uniformizados, em alguns lugares também sobre judeus espancados e suicídios de judeus. Essa gente ficou louca? O que o exterior vai dizer disso?"
Em 20 de janeiro de 1942, quando a Conferência de Wansee estabeleceu as diretrizes para o extermínio em massa, o "Hitler" de Kujau contemporiza: "Aguardando notícias da Conferência sobre a questão judaica. Precisamos de todo modo encontrar um local no Leste em que esses judeus possam alimentar a si próprios. Exigi dos participantes da Conferência uma solução rápida. Tem que haver no Leste um pedaço de terra onde se possa alojar esses judeus."
Não há a mínima referência ao fato que, nesse dia, acompanhado de café e bolo, decidiu-se o genocídio de milhões de judeus com as palavras "solução final da questão judaica".
A equipe de pesquisadores da NDR conclui que por trás dos textos não está apenas a fantasia de alguns indivíduos sedentos de dinheiro e fama, mas que "as anotações foram feitas num âmbito radical de direita – e negam o Holocausto".
Assim, o maior escândalo jornalístico da República Federal da Alemanha não representa somente as picarescas aventuras de um falsário genial que ludibriou toda a diretoria de um popular semanário alemão. Com ele, 40 anos atrás, também se colocava um espelho diante dos alemães.
Na época continuava havendo um interesse nada dissimulado pela figura de Adolf Hitler, sobretudo como pessoa privada, não representado como genocida e belicista criminoso, mas como homem de Estado zeloso e responsável, que não tinha na mente, de forma alguma, campos de extermínio mas antes o estado de espírito de sua companheira, os casos amorosos de Joseph Goebbels, e os próprios gases intestinais.
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