UMA MOSTRA DA POÉTICA E DA PROSA OUROFINENSE TECIDA NO LIVRO "FRAGMENTOS" DO AUTOR MAURO GOUVÊA
Mauro Gouvêa |
Livro: Fragmentos
Pagamento: Via Pix
Contato para Aquisição do Livro: Facebook
Poema de tristeza absoluta e passageiraQuando eu morrerQuero as persianas de meu quarto abertasPara o luar refletir no vazio todas as noitesPara que quem passe da rua jogue confetePara que a música das casas entremE as buzinas ocupem o lugar do silêncioQuando eu morrer, deixem o mato no meu quintalAs florezinhas tímidas, roxas e anônimasDeixem os trevos e o capimOs insetos persistentesAs formigas e suas legiõesQuando eu morrer cerrem bem minhas pálpebrasPois morri intoxicado de luz e quero a escuridãoNão esqueçam as moedas para o barqueiroIrei para o Hades fugir do tédioE dos santos hipócritasQuando eu morrer, deixem minhas roupas no varalAcenando a cada brisa, com saudades de mim.Deixem a chuva fazer a vez do meu suorE a poeira tomar lugar da minha humana sujeiraQuando eu morrer,Pode ser em um dia como o de hojeNão velem o meu corpo hirtoNão chamem padre, rabino, pastorNão me benzam e não orem por mimNão me banhem em água bentaAli está uma casca que dispensa rituais.Que meus amigos não se vistam de lutoNão chorem ou solucemNão me façam elogiosNão me acrescentem atributosQue cantem, dancem, assobiem e zombemQue se riamQue se amem e que se armemCom ideais que deixei esquecidosNão se apressem, amigosHaverá tempo.Hoje estou longe, nas montanhas que crieiHoje estou longe, nos mares dos quais fugiHoje estou longe e desliguei o telefoneOs fios, as veias.Só hoje.
Capítulo I – Raimundo
Não bastasse a seca, tem também essa seca em minha vida. Maria Rita foi’simbora. Juntou os trapos sem mais aquela e me deixou aqui desacorçoado, com a mão inchada, de enxada na mão. Quem vai me preparar a marmita? Quem vai cozer minhas calças? Meu cafuné... quem?
Capítulo II – Zé Marcos
A tarde sufocante, o nó da gravata já há muito desfeito, o suor alagando a camisa. Que dia, meu Deus! Malditos clientes, maldita bolsa de valores, maldito mercado de capitais. Um Whisky, um santo Whisky é do que eu preciso.
Preciso mesmo é encher a cara, tomar um porre daqueles e esquecer. Esquecer a bolsa de NY, esquecer a quebradeira dos EUA. Às vezes eu chego a bendizer o Bush. O pânico da economia mundial me ajuda por breves instantes a esquecer meu próprio pânico, meu medo, meu imenso e pavoroso medo da solidão.
Um bilhete, um ridículo bilhete sobre o criado mudo deu fim a um romance. Isabel. Com que direito a bandida me deixa assim, no meio de uma crise. Que crise! Quem irá me trazer o café da manhã? Quem vai me lembrar o horário das consultas com o psiquiatra? Quem vai cuidar de mim? Quem?
Capítulo III – Isabel
Isabel curte esse momento, essa deliciosa liberdade. A indelével sensação de ser ela mesma. Só! Seu único senão é esse apartamento enorme para cuidar, o espaço a preencher.
Vestiu seu vestido mais leve e deixou a solidão entre as paredes de seu apartamento. Uma volta no shopping, quem sabe um sorvete? Sozinha!
Gente bonita, jovem, despreocupada. São muitos os rostos que desfilam ante os olhos descompromissados de Isabel.
Súbito seu olhar é atraído por uma figura magra, de ar tristonho, que admirava as vitrines da livraria Saraiva. Parecia que aquela mulherzinha frágil estava namorando os livros.
Estranho... - pensou Isabel - Com essa cara de fome deveria estar olhando para um balcão de padaria. Credo! – repreendeu-se Isabel - A convivência com Zé Marcos me tornou preconceituosa. Com esse pensamento Isabel olhou a moça magra com mais simpatia, como que se desculpando por seu pensamento politicamente incorreto. Quem seria ela? E, melhor, por quê ela, Isabel, queria saber disso?
Capítulo IV – Maria Rita
Maria Rita saiu do sertão. Sentia um nó no peito, um aperto no coração. Se soubesse o significado da palavra, diria que estava angustiada.
Sua vida ao lado de Raimundo era o cão. Ela mocinha, casada para o agrado da família, deixou a escola onde aprendia e tomava gosto pelas letras para entregar-se de corpo e alma para um homem que mal conhecia. Melhor dizer que se entregou só de corpo. Sua alma passarinha ambicionava vôos mais altos.
Ano após ano, no eito junto a Raimundo, no leito junto a Raimundo, na vida magra junto a Raimundo. Juntos mas não próximos.
Com o tempo Raimundo tomou ciúmes dos livros e, se a vida não parecia fácil para Maria Rita, sem o consolo da fantasia tornou-se insuportável.
As cartas que recebia da tia, há muito migrada para o sul, eram um convite não manifesto, uma brecha que aos poucos se configurava em porta. Um dia a porta se abriu e Maria Rita se foi. A pé, de carroça, pau-de-arara, trem e ônibus. Jornada de retirante. Aventura de romance.
Capítulo V – Passarinho sem gaiola
Vixe! Quanto prédio, quanto carro, quanta gente! Que mundo acabado de grande! Tia Zulmira ria-se da sobrinha. Não a repreende por ter largado o marido. Não a chama de louca e desmiolada por aventurar-se a vir para São Paulo. Ela gosta de Maria Rita e sua velhice agradece a juventude dela. – “Segunda-feira eu arranjo um emprego pr’ela. Ritinha fica comigo” – pensou, fazendo planos práticos. Se é mais uma boca é também mais um braço para o trabalho.
A patroa de Zulmira não se incomodou com a presença de Maria Rita. – “Mocinha simpática e ajeitada, verei se alguma de minhas amigas precisa de empregada”.
- Vai minha filha, aqui perto tem um shopping, vai dar uma volta. Não tem perigo de se perder, é só atravessar a rua.
Depois de explicar para Maria Rita o que era shopping – “um mundo assombrado de vendas coloridas!” - Zulmira mostrou o enorme prédio da sacada do apartamento.
Mas isso era só uma pálida definição daquele mundo mágico que Maria Rita encontrou. Lojas, roupas multicores, escadas que sobem e descem sozinhas. Um turbilhão de sensações, imagens, cheiros e impressões.
Mas o que chamou a atenção de Maria Rita foi aquela imensa vitrine com livros, muitos e muitos livros. Uma enormidade de sonhos impressos, iluminados. Ela nunca soube o que era uma livraria. Ficou estática, grudada na vitrine. Um mundo...
Capítulo VI – Encontro
De repente, o instinto sertanejo de Maria Rita sentiu um olhar às suas costas. Virou-se e se deparou com uma moça linda que a olhava com um sorriso amigo.
- Oi! – disse Isabel – Gosta de livros?
- Muito! – Respondeu tímida Maria Rita.
- Vamos entrar?
O convite espantou Maria Rita. Entrar? Viajar nessas prateleiras de sonhos?
Medo, apreensão, ansiedade. Era o que sentia a sertaneja. No entanto, a curiosidade prevaleceu.
- Vamos – respondeu – mas eu não tenho dinheiro...
- Eu lhe faço um presente – ofereceu Isabel.
- Obrigada.
Assim foi o começo desta estranha amizade. Um sorriso, um livro, um convite para um lanche.
Aquelas mulheres de universos tão distantes, de mundos tão distintos e emocionalmente tão semelhantes. A solidão acompanhada. A mulher objeto. A fêmea incompreendida em suas carências. A inteligência subestimada. A voz sem retorno.
Maria Rita começou a trabalhar com Isabel. Isabel começou a educar e lapidar Maria Rita. O gosto pela leitura as unia. A sensibilidade era igual. Maria Rita, pura. Isabel, refinada. Ambas em harmonia e felizes.
Capítulo VII – Tudo se ajeita
Raimundo? Ainda no eito, sol a sol. Na cama e na mesa uma nova mulher. Analfabeta e xucra como deveria ser desde o início.
Zé Marcos? Continua neurótico, ambicioso. Voltou para a casa da mãe que não o deixa perder o horário do psiquiatra e dos calmantes do dia-a-dia. Está namorando uma emergente socialyte. Endinheirada, fútil e sem cultura. Graças a Deus!
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