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A tortura pela esperança [Stella Florence]

A tortura pela esperança 

por Stella Florence

Talvez nenhum sentimento seja tão necessário à sobrevivência quanto a esperança. Mais do que o amor, é a esperança que faz com que sigamos em frente diante de um diagnóstico desfavorável, é a esperança que faz com que tentemos mais uma e outra e outra vez concretizar um sonho antigo, é ainda a esperança que faz com que corações alquebrados continuem se levantando da cama todas as manhãs.

Mas a esperança também pode ser uma tortura. O escritor francês Villiers de L’Isle Adam (1838-1889) criou um conto estupendo sobre o tema usando sua refinada e cruel ironia. O título não poderia ser mais claro: “A tortura pela esperança”. Nele, um Inquisidor espanhol visita, na masmorra, o rabino Aser Abarbanel que, há mais de um ano, vinha sendo torturado pela Santa Madre Igreja. O objetivo da visita é avisar que, no dia seguinte, o prisioneiro será queimado vivo.

Sinta o sarcasmo de Villiers através da fala do Inquisidor: “Filho, alegra-te, tua provação nesta Terra chega ao fim. Diante de tanta obstinação, se tive de permitir, embora sofrendo, que tantos rigores fossem adotados, minha tarefa corretiva de irmão tem limite. Amanhã farás parte do auto-de-fé: serás exposto ao quemadero, braseiro premonitório da eterna chama; como bem sabes, filho, ele só queima à distância e a morte chega lenta, em duas, às vezes três horas, por causa dos panos gelados e molhados com os quais temos o cuidado de preservar a fronte e o coração dos holocaustos. Serás apenas o quadragésimo terceiro. Considera que, posicionado na última fileira, terás tempo suficiente para invocar Deus, para ofertar-Lhe o batismo de fogo pertencente ao Espírito Santo. Tem esperança na luz divina e dorme”. Fala sério: mais fofo que isso nem o ursinho Poof!

Ao sair da masmorra, porém, o Inquisidor não fecha a porta como deveria. Eis uma chance para o rabino escapar! Com o corpo crivado de feridas e fraturas, o prisioneiro se arrasta por um longo corredor até alcançar a liberdade. Ao se ver num jardim perfumado, sob a proteção das estrelas, Aser Abarbanel estende os braços e ergue os olhos aos céus em agradecimento. Todavia, nesse instante, alguém o abraça: é o Inquisidor. “E enquanto o rabino Aser Abarbanel, com os olhos convulsionados sob as pálpebras, ofegava de angústia nos braços do ascético dom Arbuez, compreendia que todas as fases daquela noite fatal não eram senão um suplício previsto, o da esperança!”.

Você sabe bem o que é isso. Após ouvir palavras tão lindas, tão amorosas, tão balsâmicas pro seu coração e pras suas entranhas em frangalhos, você se deita sorrindo, aquele sorriso contínuo, aquele que não conseguiriam tirar do seu rosto nem sob uma máscara de ferro. Você dorme acreditando que finalmente sua alma saiu daquela marquise suja sob a qual você tentava sem sucesso se abrigar da garoa e do vento gelados. Você acha que ganhou um cobertor quentinho, uma cama, um quarto protegido e que nunca mais, nunca mais, nunca mais irá sentir frio.

Dias depois, ao encontrá-lo novamente, você alegre, você ingênua, você bobinha, lê um poema que separou com cuidado, lê aberta como uma flor descuidada, flor sem espinhos, flor sem arame farpado, flor sem cerca, flor sem muro. Ao ouvir suas palavras sobre o mar, porém, ele se lembra da areia; ao ouvir sobre o pólen fecundo, ele fala da devastação definitiva do deserto; ao ouvir perfumes, ele te chama para um rio Tietê de dúvida e opacidade.

Está doendo um tanto mais agora, eu sei, porque você estava repleta da seiva da esperança. Mas calma, querida, vai passar. A esperança é a última que morre – mas morre.


Stella Florence nasceu em 1967, é escritora formada em Letras e vive em São Paulo. Tem uma filha, 30 tatuagens e oito livros. É exatamente desse modo, objetivo e charmoso, que a autora de "Hoje Acordei Gorda" e "Ser Menina é Tudo de Bom", entre outros títulos, costuma se apresentar.


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