"Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam"
O caríssimo leitor, durante o cotidiano, já se deparou com alguma imagem que lhe daria um belo romance? Quem sabe uma crônica, um conto, um poema? Pois, bem! Estando no restaurante O elefante, em Salzburgo, na Áustria, a convite de Gilda Lopes Encarnação, José Saramago se deteve diante de uma representação da Torre de Belém, juntamente com pequenas esculturas que enunciavam um certo itinerário, e ao indagar sobre aquilo, lhe disseram ser a representação da viagem que fizera um elefante indiano no século XVI, no ano de 1551, precisamente, percorrendo o trajeto entre Lisboa a Viena. Desta representação de um fato histórico, logo o pressentimento que levou Saramago a transpor numa linguagem literária, o que seria por ele publicado em 2008, como sendo, A viagem do elefante.
Uma das artimanhas de José Saramago a fim de atravessar sua pena nas escrituras literárias produzidas por ele foi beber da historiografia oficial portuguesa, na sua primeira fase como romancista, para depois recriar o passado histórico numa visão irônica, muitas vezes sacárticas, tomadas por certa dose de humor, numa criticidade aguda em referência às verdades absolutas propagadas pelo discurso histórico, conjugando com o pensamento de Oscar Wilde, quando este proferiu que "a única coisa que devemos à História é a tarefa de reescrevê-la", assim foi, como nos romances, Levantado do chão, Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis e História do cerco de Lisboa, e por último, A viagem do elefante, por onde este brilhante escritor lusitano "bebeu na fonte da História para recontá-la, dando vozes aos excluídos. Foi assim que ele substituiu o que foi pelo o que poderia ter sido", como salientou a crítica literária Mariana Cortez na revista Carta Capital, numa escritura literária levada ao condicional.
Em A viagem do elefante, cuja estrutura formal mais se apresenta ao formato de um romance, no entanto, ao aos olhos do próprio autor se assemelha a um conto, o narrador saramaguiano narra, ao recorrer à discursividade histórica, uma viagem que fizera um elefante indiano, Salomão, acompanhado por seu conarca, Subhro, de Lisboa a Viena, como um presente de casamento de D. João III ao arqueduque Maximiliano II, apresentando até certo ponto um enredo simples, em contraposição ao tom ensaístico, como é feitio de toda discursividade romanesca saramaguiana, principalmente quando a temática envolve o relacionamento entre o trabalho do historiador em contraponto a do ficcionista, tendo como base comum a presentificação do passado, pois, "o passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam saber o que há por baixo delas”, e de repente, pode até sair um elefante, como a substituição de um não no lugar de um sim, pois tudo é possível na escritura saramaguiana.
Para Saramago, a história é uma construção discursiva, e para tanto, ela é parcelar e parcial, seletiva e discriminatória, tendo"razão os cépticos quando afirmam que a história da humanidade é uma interminável sucessão de ocasiões perdidas. Felizmente, graças à inesgotável generosidade da imaginação, cá vamos suprindo as faltas, preenchendo as lacunas o melhor que se pode, rompendo passagens em becos sem saída e que sem saída irão continuar, inventando chaves para abrir portas órfãs de fechadura ou que nunca a tiveram", assumindo aquilo que postulava a crítica canadense Linda Hutcheon com relação à metaficcção historiográfica, cujo objetivo não era negar a história, mas "introduzir nela pequenos cartuchos que façam explodir o que até então parecia indiscutível: por outras palavras, substituir o que foi pelo que poderia ter sido", como propagava o próprio Saramago em seus cadernos.
O termo viagem para Saramago significa autoconhecimento, tendo como estrada a percorrer, o próprio discurso histórico, que por ele, é dessacralizado, esmiuçado, jogando por terra verdades estabelecidas pela história, por onde o leitor deve caminhar com um olhar não ingênuo, mas crítico, mesmo sabendo se tratar de uma escrita ficcional, pois para Saramago o discurso histórico "só colhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido como histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poeria ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da puta realidade".
Na escritura de A viagem do elefante, podemos notar mais uma vez o cruzamento entre o discurso literário a permear o discurso histórico, mas desta vez, com uma pitada a mais de humor, e como sempre, uma tonalidade de ironia, por onde "uma vez mais Saramago rema ou narra contra a maré em sua intenção de desocultar a realidade do século XVI em seu romance", como postula o crítico José Ornellas.
Robson Veiga - Mestrando em Literatura e Crítica Literária pela PUC de Goiania-GO. Página pessoal na internet: Café Literário.
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