7 livros difíceis de traduzir para o português
Se não fossem a experimentação, os neologismos e o
universo fantástico de Guimarães Rosa, a obra do autor brasileiro não teria a
mesma fama. Mas esta virtude também pode virar um problema para tradutores.
Afinal, não é fácil traçar uma ponte entre duas línguas, transportar mundos e
personagens para outros contextos e encontrar o sentido exato de expressões e
analogias estrangeiras. E quanto mais inventivo for o autor da obra original,
mais desafiadora é essa viagem linguística. Entre obras já desbravadas e aquelas
que ainda aguardam por sua transposição para outro idioma, a SUPER listou 7
livros estrangeiros muito difíceis de se traduzir para o português:
1-Ulysses, de James Joyce (1918 – 1922)
A Marilyn já leu, e você? Foto: Eve Arnold
Se quiser saber o segredo do sucesso de Ulisses, melhor
não perguntar a Paulo Coelho. O escritor causou polêmica recentemente ao dizer
que o clássico de James Joyce é “só estilo” e que, se dissecado, “dá um tuíte”
- uma ofensa quase pessoal aos fãs que comemoram desde 1954 o Bloomsday,
feriado literário dedicado a homenagear a obra do escritor irlandês. Não faltam
pesquisadores e leitores para defender que Ulisses é mais que “só estilo”. Mas
é verdade que suas mais de mil páginas são preenchidas pela ousadia linguística
de James Joyce. Jogos de palavras, trocadilhos, citações e neologismos são
apenas alguns dos recursos empregados pelo autor para narrar um dia na vida de
Leopold Bloom que, em 24 horas – entre 15 e 16 de junho de 1904 -, vive
aventuras parecidas com as de Ulisses na Odisséia, de Homero.
A obra, publicada em capítulos a partir de 1918 na
revista americana The Little Review, não é facilmente transposta para o
português. O primeiro a se aventurar nesta empreitada foi Antônio Houaiss
(aquele do dicionário), em 1966. Depois foi a vez de Bernardina da Silva
Pinheiro, em 2005. Mais recentemente, Caetano W. Galindo assinou a tradução
lançada em 2012 pela Companhia das Letras, em que se optou por deixar de fora
as inúmeras notas-referência da obra original. Uma opção defendida por
apresentar a obra como ela é: “um romance, talvez o maior romance de todos, e
não um quebra-cabeça exemplar”. Cabe ao leitor virar as páginas do livro e
conhecer sua linguagem e seus personagens – como o Cidadão, com suas
sardasmuitas, barbirsuta, boquimensa e ventasgrandes.
2. Bliss, de Katherine Mansfield (1918)
O famoso conto da escritora neozelandesa Katherine
Mansfield, Bliss, acompanha a personagem principal, Bertha, em um dia de
intensa e ingênua alegria. Poderia ser um texto simples, mas não é. Temos a
impressão de estarmos na mente da personagem principal, mas ao mesmo tempo
somos relembrados de que há um narrador externo que nos conta a história. “Este
jogo de planos demanda que o tradutor seja sensível a como esse tipo de
narrativa é construído em português por autores da literatura brasileira que
também jogam com esses planos narrativos. O segundo desafio é lembrar que, ao
longo do conto, há diferentes interações entre as personagens, nas quais as
relações sociais demandam um tipo de linguagem diferenciado: a personagem
principal fala com sua empregada, fala com a babá de sua filha, com seu marido
e com seus convidados para o jantar que está oferecendo na sua casa. Também
fala consigo mesma”, diz a professora e coordenadora da área de Tradução da
Faculdade de Letras da UFMG, Adriana Pagano.
Traduzido para o português por cinco autores
diferentes, o conto ganhou no país títulos também distintos: Êxtase, nas letras
de Ana Cristina Cesar (1980); Infinita Felicidade, assinada por Edla van Steen
e Eduardo Brandão (1984); e Felicidade, nas versões de Érico Veríssimo (1940),
de Julieta Cupertino (1991), e de Maura Sardinha (1993).
3. Finnegans Wake, de James Joyce (1938)
rolarrioanna e passa por Nossenhora d’Ohmem’s, roçando
a praia, beirando ABahia, reconduz-nos por cominhos recorrentes de Vico ao de
Howth Castelo Earredores.
É assim que tem início o Finnicius Revém do tradutor
Donaldo Schüler. Difícil de entender? Fica pior. James Joyce levou 17 anos para completar
aquela que seria considerada uma das mais difíceis obras de ficção daliteratura em língua inglesa e um marco da literatura experimental. No livro, o
último publicado pelo autor irlandês, palavras do inglês e de outras línguas
são fundidas, criando uma linguagem única. O resultado: múltiplos sentidos e um
trabalho hercúleo para o leitor e para o tradutor que aceita o desafio.
“Assim como Ulisses, Finnegans Wake impõe renovados
hábitos de leitura. A linear não basta. Em cada parágrafo, em cada frase, em
cada palavra, tocamos estratos sobrepostos, convite a trabalho de arqueólogo.
Verticalidade e horizontalidade se entrecruzam espacial e cronologicamente.
Surgem arqueoleitores”, explica Schüler na introdução de sua tradução da obra
de Joyce, com um spoiler: não espere entender a obra por completo. Pode parecer
um conselho esquisito vindo do tradutor que se debruçou por meses sobre o
livro, mas é coerente com a ideia de que Finnicius Revém não é um livro para
ser “desvendado”. O leitor deve embarcar nos jogos sonoros e no ludismo de
imagens e ideias. Quem já o leu e traduziu promete que o texto explica-se a si
mesmo. Aventure-se pelas páginas e tire a prova.
4. Infinite Jest, de David Foster Wallace (1996)
Uma família problemática, quadras de tênis, rehab,
depressão, publicidade e reflexões sobre a maneira como o entretenimento domina
nossas vidas – tudo se mistura no romance de David Foster Wallace, que se passa
em uma versão futura (e absurda) da América do Norte. O extenso livro – são
mais de mil páginas – conta com 388 notas de rodapé (sendo que algumas notas também
têm notas de rodapé), um recurso que, segundo o autor, ajuda a quebrar a
linearidade da história e, ao mesmo tempo, manter a coesão interna.
Infinite Jest é prestigiado por quebrar as regras e
propor uma estrutura narrativa que foge do lugar-comum. “É um texto que todo
mundo precisa conhecer. É um bicho muito estranho, muito incomum mesmo, uma
mistura de épico porra-louca pynchoniano [referente a Thomas Pynchon] com
romance filosófico-moralista tipo Thomas Mann. É um romance de ideias, e ideias
profundas, com manadas de hamsters selvagens”, afirma o doutor em Linguística
pela USP, Caetano W. Galindo, que está trabalhando atualmente na tradução do
livro para o português. Caetano, que passou 10 anos trabalhando em Ulysses,
deve terminar esta nova odisseia em 10 meses. Ele narra o processo de tradução
de Infinite Jest no blog da Companhia das Letras – acompanhe por lá.
5. Mason & Dixon, de Thomas Pynchon (1997)
“Romance histórico” é um termo aplicável ao livro
lançado por Thomas Pynchon em 1997, mas não traduz bem a grandiosidade de sua
obra. Em Mason & Dixon, ao mesmo tempo em que faz referências históricas
precisas, o autor estadunidense dá lugar a personagens fantásticos e a grandes
vôos de imaginação. O livro conta a história dos cientistas Charles Mason e
Jeremiah Dixon, que adentram o continente norte-americano do século XVIII
explorando territórios indígenas. Para contar este conto não bastou a Pynchon
ambientar a história no passado: a própria linguagem em que o livro é escrito
recria o inglês setecentista.
Ao longo da narrativa, os pontos de vista da narrativa
são alternados – os personagens em cena contam suas próprias versões para a história
que se desenrola. O que “realmente aconteceu” é uma construção do que é dito
pelos vários narradores. Ele brinca, assim, com a fragilidade de qualquer
registro histórico e da História em si. Não é pouca coisa. Por tudo isso, o
poeta e tradutor Paulo Henriques Britto levou anos para realizar a tradução
para o português de Madson & Dixon. A atualidade da obra lhe permitiu um
privilégio: consultar o próprio Pynchon.
6. Cloud Atlas, de David Mitchel (2004)
Cloud Atlas, música composta pelo japonês Toshi
Ichiyanagi, primeiro marido de Yoko Ono, inspira o título homônimo da obra de
Mitchel (clique para ouvir).
Ainda sem tradução para o português (por que será?),
Cloud Atlas é composto por seis histórias que levam o leitor por uma viagem no
tempo e na linguagem. Do Pacífico Sul do século XIX a um distante futuro
pós-apocalíptico, cada conto presente no livro é lido e observado pelo
personagem principal da história seguinte. E tem mais: as cinco primeiras
histórias são interrompidas em um momento chave da narrativa.
O livro, bem recebido pela crítica, foi comparado a um
“perfeito jogo de palavras cruzadas”, desafiador e envolvente. Mas o que rendeu
elogios a David Mitchel não foi apenas a ideia de tecer o livro com uma série
de narrativas incompletas, um recurso já explorado na literatura – Mitchel diz ter se inspirado em Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino para
escrever Cloud Atlas, inclusive. Seu toque especial foi colocar um “espelho” no
centro do livro. Depois do sexto conto, cada uma das cinco histórias é
revisitada e concluída – mas em ordem cronológica inversa. Pã. Você encaria
essa viagem literária?
7. The Tree of Codes, Jonathan Safran Foer (2010)
Nenhum livro é intraduzível, é verdade, mas The Tree of
Codes certamente é um quebra-cabeças desafiador – principalmente, por sua
forma. A obra, do mesmo autor de Extremamente Alto e Incrivelmente Perto, é o
que se pode chamar de livro-objeto - além de ser lido, ele pode ser
experimentado como uma obra de arte visual.
A ideia nasceu da vontade do autor de criar um livro a
partir de recortes, explorando a relação física entre as páginas e a maneira
como isso poderia ser desenvolvido para criar uma narrativa. Para tornar isso
palpável, Foer tomou como base o livro A Rua dos Crocodilos, de Bruno Schulz, e
passou recortar e subtrair dele palavras, frases e parágrafos, esculpindo
(literalmente) uma nova história. O trabalho artesanal foi elevado a uma
publicação em grande escala e quem compra o livro pode folhear suas frágeis e
poéticas páginas vazadas, como nas imagens acima. Como transpor essa mesma
experiência (e seu processo) para outra língua?
Consultoria: Adriana Pagano, professora e coordenadora
da área de Tradução da Faculdade de Letras da UFMG e pesquisadora do
Laboratório Experimental de Tradução da Faculdade de Letras da UFMG; Caetano W.
Galindo, professor de Linguística Histórica na Universidade Federal do Paraná,
doutor em Linguística pela USP e tradutor de livros de Tom Stoppard, James
Joyce e Thomas Pynchon, entre outros.
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