Na luz da escuridão [Cinthia Kriemler]
Pedro nunca dizia nada. E talvez esse silêncio exacerbasse a sanha daquela besta que recendia a álcool acumulado.
— Que hora é essa? — rosnou o bêbado.
— Num sei. Tenho hora certa não.
— Num tem porque tava na vadiagem, num é desinfeliz?
— Tava na colheita, pai.
— E por que tão tarde? Os otro já tão em casa, que vi pasano na estrada faz quase hora.
— Eu vim andando.
— Num gosta da boleia, junto dos home?
— Eu prefiro vim de a pé, pai.
— Tu num senta na boleia junto dos home porque tu te acha mió que eles, né não? Tu é cheio de bosta que nem a tua mãe e o povo dela! Até o teu nome é coisa de gente besta: Pedro... Parece mais é peido! Hahahahaha!
As mesmas provocações, todo fim de tarde. O mesmo algoz, a mesma violência, o mesmo medo. Pedro se calava e pedia licença para ir pegar a janta. Sebastião respondia que ele não ia comer nada para aprender a respeitar a sua autoridade. Pedro abaixava a cabeça e saía de perto do homem embriagado. Então, Sebastião se levantava, arrancava da prateleira improvisada um rebenque desgastado e descia no lombo do filho. Golpeava tanto que às vezes cambaleava. Depois de se saciar na dor do filho, largava-o e prosseguia em sua rotina de abusos. Pedro ouvia, então, entorpecido, o estupro da irmã, Rosarinho.
Antes, quando a menina tinha alguma esperança de que a bestialidade de Sebastião podia ser detida, ela gritava pelo irmão. Gritos estridentes como os de um bicho preso em armadilha. Com o tempo, tornaram-se apenas sons sufocados pela descrença. Pedro se levantou do chão muitas vezes para tentar ajudá-la, mas só fazia era apanhar mais um tanto, e com mais força ainda.
Aos poucos, Rosarinho cessou até os lamentos. Como um adulto calejado, fechava os olhos e estremecia, enquanto o animal a penetrava. Pedro não conseguia deixar de pensar que ela se calava para poupá-lo de uma nova surra, e a sensação de ser protegido por quem deveria proteger acabava por destroçá-lo ainda mais. A sina de Rosarinho era sem volta.
Ele sentia saudade da mãe. A mulher silenciosa e meiga sucumbira havia anos aos maus-tratos do marido. A única tia que conheceram, irmã da mãe, morava na capital e só tinha aparecido por ali umas três ou quatro vezes, até que Sebastião a encurralara na cozinha, bêbado, tentando estuprá-la. Nunca mais.
Então, aconteceu aquela noite horrível.
Pedro soube, no momento em que se deitou na escuridão, que o seu colchão de terra havia sido maculado. Faltava poeira sob suas costas. Alguém havia estado ali e pisado tudo sem cuidado. Profanação. Olhando para o alto, sentiu tarde demais o fedor dos excessos de Sebastião.
— Tu achô que ia me enganá até quando, seu merda? — o homem bêbado gritou, levantando a mão para o primeiro murro.
Pedro se encolheu no piso duro para esperar os golpes. Mas, soltando uma gargalhada boçal, o pai mudou de ideia e o apanhou pelo cós da calça, tentando virá-lo de costas para penetrá-lo como fazia com a irmã. E enquanto forçava Pedro a ficar de quatro para a violação, espumava pelos cantos da boca.
— Hoje tu vai sabê quem manda, moleque! Vô te isganá que nem eu fiz com aquela égua da tua mãe!
Muito tempo depois, quando sentiu a dor insuportável nos nódulos da sua mão direita, Pedro percebeu uma viscosidade entre seus dedos. Esfregou as mãos na terra várias vezes, até que parou de senti-las grudando. Um cheiro doce e enjoativo impregnava o ar. Levantou-se, mas na tentativa do primeiro passo tropeçou em alguma coisa que o derrubou. Tateou o chão até sentir de novo as mãos meladas pelo sangue de Sebastião. E sentiu o mau cheiro da aguardente barata que se desprendia do morto. Incapaz de pensar, fugiu sem voltar os olhos para o galpão.
Em casa, chamou por Rosarinho. A menina, surgindo detrás do pano que era usado como cortina, deitou nele o olhar opaco.
— Eu matei o pai, Rosarinho — disse, sem encará-la — Ele foi atrás de mim e quis fazer comigo o que faz com tu. E ainda me disse que esganou a mãe. Aí, eu matei ele, minha irmã. Matei, matei!
— Matou não, Pedro. Quem matou o pai fui eu — a voz dela soou sem inflexão.
— Deixe de bestagem! Num repete isso! Cumé que tu ia ter matado o pai?
— Com a faca... Com a faca dele.
Rosarinho estava fraca da cabeça. Coisa do sofrimento que passava nos estupros. Tinha que ser! No entanto, tudo o que Pedro se lembrava era do pai tentando abusar dele. E, depois, das mãos cobertas de sangue. Mais nada.
— Tu num lembra de nada, num é? — continuou a menina — É porque não foi tu que matou o pai.
— E como foi que tu fez isso, Rosarinho? — ele se desesperou.
— Tem é tempo que eu te sigo toda noite. Tinha medo de ficá aqui sem tu. Eu ficava do lado de fora do galpão, escondida, te esperando. Daí, hoje, eu vi quando o pai chegou lá. Tu bateu muito nele, Pedro. Tu bateu tanto que ele caiu no chão feito um saco vazio. Mas tu num matou ele não. Quando eu entrei, o pai tava desmaiado e tu também. Peguei a faca na cintura dele e enfiei uma, duas, três, quatro...
Olhos vidrados, a menina repetiu no ar o trajeto que a faca fizera no bucho de Sebastião. Dezessete vezes. Pedro tentou abraçá-la, mas ela o empurrou, passando para o outro lado da cortina improvisada, novamente muda.
Ele se descontrolou, sentindo um medo imenso pela irmã. Sabia que logo que amanhecesse a polícia encontraria o cadáver e chegaria até eles. E levariam Rosarinho para longe dali. Acostumara-se a esquecer de si mesmo porque lhe convinha sobreviver à dor, mas não aguentaria ver a vida dela destroçada.
Desesperado, perguntou o que ela fizera com a faca, mas a irmã não respondeu, trancada em seu mundo impenetrável. Vendo que muito em breve haveria claridade, ele correu para o galpão. Era preciso esconder a faca antes que a polícia fosse avisada do corpo.
Não encontrou nada no chão e nem nos matos ao redor da construção. Desesperado, pensou que teria de desistir da busca. Foi quando lhe ocorreu o pensamento. Tateando o corpo de Sebastião, encontrou enfiada em sua barriga a faca que descansava da função macabra de assassinar seu próprio dono. Sem pensar, puxou a arma e a embrulhou na camisa, correndo para longe. Já bem distante do galpão, usou a faca ensanguentada para fazer um buraco fundo e a enterrou. Esfregou novamente os dedos na terra, até que o barro cobriu as manchas marrons do sangue coagulado. Então, arrancou a camisa manchada e rumou para casa. A manhã ainda não tinha chegado quando, nos fundos do casebre, a fumaça das roupas queimadas de Pedro e Rosarinho subiu ao céu, malcheirosa, levando consigo a morte.
A menina nunca mais falou. Nem no enterro do pai, nem durante as investigações feitas apressadamente pela polícia local. Não houve esforços para encontrar o culpado. Sebastião não valia o empenho. Dias depois, os dois irmãos foram levados para a casa da tia, na capital. Nunca mais voltaram ao galpão. Nem depois que os anos se passaram e ambos retornaram para o campo, para a velha casa, trazendo, a reboque, a companheira e os filhos de Pedro. Os fantasmas do tempo foram enterrados pelos risos das crianças. Na mesa, um cheiro de feijão e de carne.
8 comentários
Sensacional, Cinthia Kriemler! Lembra-nos toda a miséria humana tão longe de nós outros privilegiados. E o final redentor, como que a dizer que ainda poderá haver salvação. Parabéns demais pelo seu jeito de narrar. Texto magnífico !
Nossa, quanta verdade escrita!!! Quanta realidade, pois muitas famílias passam por essa violência!!! Demorei para escrever mas li numa enorme velocidade para saber o desfecho!!! E eu teria feito a mesma coisa, se fosse Rosarinho!!! Amei, amei e amei. PARABÉNS, Cinthia!!! É de tirar o fôlego!!!
Sensacional! Catártico, como bem convém a essas crianças destruídas pela realidade triste desse nosso Brasil.
Sensacional! Catártico, como bem convém a essas crianças destruídas pela realidade triste desse nosso Brasil.
Cecilia, Maria Silvia e Nena, muito obrigada pela leitura e pelos comentários! :)
Cínthia, vou ter que provar mais tarde da leveza e da ligeireza de Leminski, pois tanto esse fenomenal texto quanto o VIA DOLOROSA, que você publicou na SAMIZDAT, me sugaram as energias, consumiram minhas ideias e sentimentos de modo voraz. A vida desfila por suas palavras mais real do que a vida que vemos por aí. Adentramos não só os galpões e casebres, mas as almas; e, uma vez lá dentro, queremos sair, mas sem pressa, pois já estamos completamente imersos em sua trama literária... Aqui repleta de sombras e escuridão, mas lá no fundo (ainda bem!) sempre nadam alguns peixinhos luminosos. Você arrasa, Cínthia! Sou fã!!!!
Emerson, meu querido, muito obrigada! Vale escrever para ganhar comentários como este de alguém que escreve como você! Beijo imenso!
Esse me tomou o ar. O conto chega a pulsar, como se tivesse vida própria. Sim, obra de arte!
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