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DESAFETO [Jean Marcel]


DESAFETO


Ao sair do banheiro no bar do Tonho, ainda limpando o canto da boca por ter recém-devolvido involuntariamente tudo o que havia consumido nas últimas duas horas, o Afonso pensou ter visto o vulto de um sujeito passando. Sensação engraçada essa de estar sendo observado, pensou! Estava sob o efeito dos quinze chopes bebidos intercalados com meia dúzia de caipirinhas. Bem que sempre lhe avisaram que não devia misturar! Misturou uma porção de calabresa com outro tanto de aipim frito, deu nisso! Deu dois passos para trás como quem engata a marcha à ré e parou em frente ao espelho para conversar com o “estranho”.

– Cara! Queeem é você? – Perguntou, enrolando a língua, olhando fixamente para o seu reflexo.

– EEEEEEu te conheço? – completou.

– Parece comigo, só que um pouco mais velho – Pensou baixinho.

Aguardou um minuto, esperando que sua própria imagem parasse de balançar e pudesse observar melhor. Aproveitou para inspirar profundamente na expectativa do o enjôo passar.


– A vida te maltratou? – Já não era uma pergunta. Era uma provocação.

Como evidentemente não obteve nenhuma resposta, decidiu ser mais direto.

– Bicho, tu estás um velho! – falou categórico, como quem encerra uma discussão.

Ao que tudo indica, finalmente reconhecera sua própria imagem! Ele sabia que esse dia chegaria mais cedo ou mais tarde. Olhar-se-ia no espelho e não reconheceria o sujeito à sua frente. Só não estava preparado para a ocasião.

Agora, com olhar admirado, bastante curioso, reparou detalhadamente o conjunto da obra. Lembrou-se de trancar novamente a porta do banheiro para que não fosse visto pelos colegas naquela cena patética, e pela primeira vez na vida tentou olhar para si como se fosse um observador neutro. Bêbado, porém isento!

Avaliou cada detalhe como um empregado de concessionária examinaria um carro usado antes da compra. Um check-list mental, repetia baixinho enquanto olhava para a sua figura:

– lataria, estofamento, pintura,...

Reparou que apesar de não ter tendência para engordar, já não tinha mais o corpo de um garotão de vinte anos. Tá certo... nem de trinta! Os braços afinaram, denunciando para quem quisesse ver que há muito não faziam exercício de espécie alguma, enquanto a cintura ganhou uma ridícula “borda de catupiri”, resultado dos muitos chopes acumulados, sempre tomados com os amigos às quintas-feiras naquele mesmo bar.

Olhando bem de perto também já não havia mais dúvida, claramente seu DNA carregava o gen da calvície e este, até então adormecido, resolvera agora se manifestar. Tivera a “sorte” de ser o único entre os primos que herdou essa característica do seu avô. Poderia ter herdado o olho verde da sua avó ou a altura do seu pai, mas não, tinha de ser baixinho e careca como seu avô! Percebeu desolado que aquelas “entradas” no cabelo, que até então só apareciam quando saía da piscina, iriam necessitar de uma reengenharia de penteado, pois agora cresceram, e como duas grandes avenidas paralelas com somente um canteirinho de cabelo entre elas, cruzavam sua cabeça até o alto. Isso, apesar dos xampus contra queda de cabelo que usava havia algum tempo, desde que um dia a Clotilde sutilmente passou a comprar e disponibilizar no banheiro. Agora, seguramente necessitaria de um tratamento mais drástico. Pertencia àquele grupo de homens inconformados que lutam até o fim, numa guerra impossível de vencer.

Como se fosse melhor que o seu próprio reflexo, mesmo cambaleante, olhou com ar de superioridade para aquele coitado que se apresentava à sua frente. Reparando nos cabelos do peito que tentavam escapar por entre os botões da camisa, notou que os brancos agora pareciam maioria. Na cabeça não era diferente. Tinha inclusive um na sobrancelha que não só se destacava dos outros pela cor, como também insistia em crescer no sentido oposto ao dos demais. Certamente já não seria mais possível arrancá-los todos com pinça, como fizera cerca de um ano atrás quando descobriu os primeiros. Desconfiava até que para cada pêlo que tirara, cinco novos deles haviam surgido, num plano arquitetado de vingança pela tentativa de extermínio.

Como não havia mesmo ninguém mais por perto, arriscou algumas poses. Até encheu exageradamente o pulmão para aparentar ser mais musculoso, mas uma tosse provocada pela falta de ar denunciou o truque. Ficou de lado. Forçou o bíceps. Depois até tentou olhar-se de costas, mas um princípio de mau jeito no pescoço o fez voltar à posição original.

Virou-se novamente de frente para si mesmo e olhou fixo para sua imagem, olho no olho, como quem só precisa de um sinal para iniciar uma briga. Fosse um filme de faroeste, ambos estariam aguardando para ver quem primeiro sacaria a arma. Deu um passo adiante quase tocando o espelho com a ponta do nariz. Respirou fundo, empinou arrogantemente o queixo e disse então com desdém para o “sujeito” que se encontrava a sua frente:

– Babaca!

Foi embora e voltou para sua mesa sem nem olhar para trás.


Jean Marcel- Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas, romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com

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